A ROSA DE OURO

Ela tem uma rosa de ouro nos cabelos, e rebola entre os “quatro Rapazes muito decentes” (de Elton Medeiros e Joacyr Santana), que são “inteligentes - Fazendo inveja a muita gente - Muito bem empregados, numa secretaria - Educados e diplomados em filosofia”, - “e quando chega fevereiro - Ver no terreiro - É sensacional - No dia de carnaval - São figuras de destaque - No desfile principal” – olha aí o Paulinho da Viola, o Elton Medeiros, o Jair do Cavaquinho, o Anescarzinho do Salgueiro e o Nelson Sargento, olha aí, meu irmão, e minha irmã, a vida, – sim, o almoço no botequim da esquina, o meu lar, não sem antes beber do copo da pinga boa e medular, do apetite abridora, aquecedora de alma, emoliente de espírito, para o preparo do corpo e dos colesteróis, que aos milhões vêm na suculenta rabada ali vendida, entre mulheres de baixos costumes e boa estima, como esta “flor do lodo”, que canta Araci Cortes, de Ary Mesquita, e que ninguém ali ouve, os meus queixumes, o meu padecer, - e depois dou o caso como acabado, como o ali acontecido, rua acima, de um porteiro que de ciúme matou a mulher, e se matou em seguida, - mas Dona Araci Côrtes entoa Ai Yoyô, Linda flor, de Henrique Vogeler, Marques Porto e Luiz Peixoto, e naquela interpretação soa como se fosse Villa Lobos, ai Ioiô, tenha pena de mim, meu Senhor do Bonfm – amo a minha rede, mergulho no samba-maxixe, tem francesa no morro, de Assis Valente, no lundu bate canela, internamente requebrando no partido-alto de Bide e Cartola:

Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Foi peixeira lá na roda
Do famoso Cartolinha
Já brilhou nos caxambus
E hoje aqui ela é rainha
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina de Jesus
É de fato partideira
Tira verso improvisado
Num partido de primeira
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, cadê você?
Cadê você, cadê você?
Clementina, Cadê Você?

Sim, que estou em festa solitário nesta “Rosa de Ouro”, dois LP, 22 faixas, o Volume I é de 1965, o Volume II é 1967, que ali mandei fazer um terno, com a gola amarela, só pra chatear, e com um nome que não era dela, num samba do Príncipe Pretinho, e solo de Jair do Cavaquinho, mas depois a Senhora Dona Clementina canta Santa Bárbara, que é batuque macumbeiro, beleza sem dono nem abandono, e o de Chatinho, a minha vontade. Vivam as tardes do Brasil!

 

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Meu amigo CRS me telefona e diz que numa clínica está internado. De lá me telefona. Alcoolismo. Tem inimigo invisível todo alcoólatra, combate mortal. Luta consigo mesmo. Seu atroz inimigo está dentro, não fora. Não o vê, porque é ele mesmo. “O olho, que tudo vê, não se vê”, escreveu Wittgenstein, no “Tractatus”. O alcoólatra combate forças cruéis da natureza: as do desejo. Mas tem um componente químico a mais, na cabeça. Me lembro do anúncio que gritava: “experimenta!”.

Meu amigo CRS agora perdeu emprego, mulher, filha, amigos, todos o abandonaram. Sobraram alguns [in]amigos de bar, grandes inimigos. “Senta aí Carlinhos. Bebe um chopinho conosco”. “- Parei de beber...” “— Um chop não vai te fazer mal algum...” É tudo que ele quer ouvir: A Morte. O alcoólatra ama a morte, esta invisível amada, bela e misteriosa.

Ele me diz que está sem cigarros, sem dinheiro e sem ter o que ler. Que precisa de um cadeado para seu armário. A clínica fica longe, noutra cidade. Mando-lhe um pacote com tudo aquilo. E não sei por que, mando-lhe “Memorial de Aires”.

Tem a ver comigo.

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Na solidão que adormeço meio bêbado nesta ensolarada tarde, sonho que ouço, de Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho e Paulinho da Viola:

Ela tem uma rosa de ouro nos cabelos
E outras mais tão graciosas
Ela tem outras rosas que são os meus desvelos
E seu olhar faz de mim um cravo ciumento
Em seu jardim de rosas

Rosa de ouro
Que tesouro ter essa rosa
Guardada em meu peito
Rosa de ouro
Que tesouro ter essa rosa
Guardada no fundo do peito!

E o corso de bambas sambistas, de baianas, mestres batuqueiros e passistas que vão descendo por aquela ladeira, que alegres, ritmados, belos e felizes, enquanto estranha noite vai caindo, em filtro de véu fino, sonho sem estrelas, nem som, no cortejo de sombras intangíveis, que se distanciam, que se esvaziam no pacífico da ipseidade daquele rumo que se move e afasta, ritmado, e binário.


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