Solange Firmino

Professora do Ensino Fundamental e de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio. Escritora, pesquisadora. Estudou Cultura Greco-romana na UERJ com Junito Brandão, um dos maiores especialistas do país em cultura clássica.

Mito em contexto - Coluna 31
(Próxima: 5/9)


Aedo, Servo das Musas

O poeta Carlos Drummond de Andrade sabia do encantamento das palavras: “Certa palavra dorme na sombra/ de um livro raro./ Como desencantá-la ? ” E sempre buscou desencantá-las: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?

Antes da invenção do alfabeto, os antigos gregos acreditavam que as Musas davam essa chave aos poetas. Os poetas que recebiam das Musas o dom de desencantar as palavras eram os aedos. Eles compunham canções ao som da lira, e conseguiam transmitir os segredos das palavras através da poesia.

Quando as canções passaram a ser escritas, os aedos desapareceram. Duas obras atribuídas a Homero, considerado o mais célebre poeta grego da antigüidade, ainda existem como canções daquela época, a Ilíada e a Odisséia. A Odisséia fala da peregrinação de Ulisses por dez anos até Ítaca, após a Guerra de Tróia. E a Ilíada, narra o nono ano da Guerra de Tróia. Os poemas eram compostos e cantados pelos aedos.

Do ponto de vista histórico, Homero é praticamente um personagem, pois os dados sobre seu nascimento, vida e morte são obscuros. Os poemas atribuídos a ele foram gerados pela transmissão oral ao longo das gerações, por isso alguns elementos têm representatividade histórica, outros são criações do próprio aedo.

O aedo não era vidente, mas, “inspirado” pelas Musas, era investido pela vidência e se tornava capaz de alcançar a verdade, ele rompia a limitação do tempo, pois sua palavra resgatava as verdades do passado e as tornava presentes na sua narrativa, que cumpria a função de perpetuar os mitos.

Diferente do vidente, que tudo sabia sobre passado, presente e futuro, o poeta usava a recordação, sob orientação da deusa Mnemósine (Memória), mãe das Musas. A Memória resgatava acontecimentos esquecidos e os revelava às Musas, que transmitiam aos aedos, habilitados a revelar os saberes entre os mortais.

Platão fez uma crítica a Homero quando falou do papel do aedo. Ao mesmo tempo em que elogiou, criticou. Platão reconheceu seu papel como “agente educador”, mas falou sobre o efeito que suas histórias podiam ter na formação dos jovens. Sabia Platão que o canto inspirado do poeta produzia os encantos que moviam os mortais.

O poeta grego Hesíodo pediu ajuda às Musas na construção da história sobre a origem dos deuses, que é a sua obra Teogonia. Somente inspirado pelas divindades ele conseguiria narrar os fatos. E ele diz: “Feliz é quem as Musas/ amam, doce de sua boca flui a voz” (Teogonia, vv. 96-97)

Hoje a Poesia parece ter perdido parte dos encantos e mistérios. Há muitos textos escritos sem poesia. Será que as Musas silenciaram? Ou apenas deixamos de cultuar a Memória? Talvez seja preciso resgatar urgentemente nossa memória e ouvir novamente o canto inspirador das musas.


Arquivos anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30

« Voltar