COLUNA DE VÂNIA MOREIRA DINIZ

Nº 32 - 21/12/2007
(próxima: 21/1/2008)

          


Experiência de um natal

Não poderia deixar passar a noite do dia 24 sem visitar e levar um pouco de conforto a eles. A última vez que visitei aquele senhor foi no Hospital, estava inconsciente e sob a ação de remédios, completamente entregue a um sono que não sabíamos se teria fim. Havia sofrido um derrame e eu temia pela sua vida. Olhando-o retornava-me a pergunta que sempre me acompanhou desde pequena: A vida valeria a pena? Para que vivermos? Olhando para o velho homem sentia um misto de tristeza e ternura por sabê-lo sofredor e, no entanto, sempre dando lição de grande e valiosa experiência.

Conhecera-o numa das visitas que eu fizera à periferia da cidade para levar alguns alimentos básicos e remédios. Ele morava com sua mulher, a sofrida Dona Maria, e um filho alcoólatra, cujo casamento acabara motivado pela própria miséria. Ele fora então morar com os pais. Dona Maria se tomou de amores por mim e eu senti um carinho imenso por aquela lutadora cuja vida nunca conhecera a paz ou um pouco de felicidade.

Nunca esquecerei a expressão do casal e do filho que embora viciado procurara conversar comigo, relatando-me num momento sóbrio, todas as fases que já passara, e a dor de não sobrepujar o vício. Lembro-me que o encaminhei aos alcoólatras anônimos e procurei enviar vitaminas e alimentos para que pudesse agüentar as diversas síndromes de abstinência, que lhe acometiam nas fases em que parava de beber. Tudo era profundamente dolorido de se ver e eu ficava muitas vezes chocada, com quadros que nunca presenciara em minha vida.

Hoje fui visitá-los para desejar senão um feliz natal, pelo menos lhes levar o conforto de um abraço e de alguma comida natalina, para suavizar a tristeza de uma vida insuportável. Dona Maria me recebeu com um sorriso (eu me perguntava como ainda conseguia sorrir) e logo segurando minhas mãos, olhava-me agradecendo num gesto de humildade. Não pude suportar e, puxei-a para perto de mim, querendo infundir-lhe no velho corpo um pouco do meu vigor. Seu Francisco ainda estava deitado e o rosto magro se voltou para mim com a ternura que sempre demonstrava. Seus olhos estavam fundos, mas pelo menos brilhavam, quando me fixaram tristemente:

— Filha, hoje é véspera de natal. Que está fazendo aqui?

— Vim desejar-lhes um feliz natal! E trazer-lhes uma pequena ceia.

Quando alguém trouxe as bandejas que eu deixara no carro, as lágrimas transtornaram a todos nós. A eles pela emoção daquele momento e a mim pela tristeza de fazer parte de um mundo tão contrastante, em que a miséria era um fato comum e aceito sem protestos ou grandes revoltas.

Muitas vezes, como hoje, me senti culpada, embora involuntariamente, por ter sido criada num ambiente, em que me sobrava o que lhes faltava. E quando meu pensamento se entregou a essa reflexão instintiva, ouvi a voz do filho do casal cumprimentando-me e pude olhá-lo, sabendo naquele instante que seu tratamento continuava e os alcoólatras anônimos haviam feito um belo trabalho.

Agradeci a Deus, à natureza, ao que quer que seja, que de poderoso energizava o ambiente naquele momento, e compreendi o quanto esses irmãos simples de caminhada, haviam me ensinado e contribuído para momentos especiais e maravilhosamente vividos. Uma experiência de Natal!


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