"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/9/2008
(próxima coluna: 9/10)

O excesso de palavra

O mundo está padecendo de muitos vazios. O que mais me irrita (e, paradoxalmente, me comove) é o vazio do excesso de palavra. A falta constante daquele dizer bem dito. Bendito. Vejo tanta fala de tanta gente, por todos os lados e nada pronunciam, em nada elevam-se. Por isso, vejo apenas que pouco escuto, pois sou vítima também do vazio. Pois muito do que falo é inútil, é preenchimento de lacunas, é apenas um estar no mundo com medo de estar só. Por isso, acompanho o movimento das bocas, e pronuncio minhas palavras, engrosso o coro dos que nada dizem, mas muito falam, muito conversam, muito argumentam. Engrosso o coro dos faladores, dos que não admitem não falar.

Os lábios se movem. O vazio se faz porque todos falam ao mesmo tempo. Todos quase sem tempo para ouvir, ou pelo menos dizer o que interessa, de forma real, plena, ampla, como somente a linguagem humana pode conseguir. Todos deturpando a nossa essência de animal falante. Deturpando pelo excesso, pelo uso demasiado. Pela desumanização de nossa anatomia: dois ouvidos, uma boca, pressupõe mais ouvir do que falar, já sentenciava o velho provérbio. Em nossa pretensa modernidade, abolimos isso também. Visceralmente falamos. Visceralmente deixamos de ouvir qualquer coisa que não seja nossa própria voz, ou a voz do outro, desde que esteja de acordo com nossos interesses.

O vazio do excesso de palavra nos preenche de barulho e quase nenhum significado. É como se estivéssemos todos contidos numa sala, todos pronunciássemos nossas verdades ao mesmo tempo. O fato é que as verdades estão se chocando no ar. Estão se matando no ar. Diante do sangue inocente de nossas verdades, falamos mais, reclamamos mais. Estabelecemos mais monólogos com os outros. O mundo moderno parece que destituiu a mão dupla da comunicação. Estamos todos em mão única, indo na mesma direção. Gritando para o horizonte, na parca esperança de sermos ouvidos.

E o vazio vai se fazendo, vais se preenchendo de mais vazio, de mais desordem. Parece que tudo está se constituindo sobre o barulho: as cidades, as escolas, as escolhas, os amores. O silêncio faleceu em algum momento e não o velamos porque não demos por falta dele.

O barulho é nossa muleta. Falar demais nos salva e nos permanece nesse mundo. Não queremos ser banidos. Bandidos da linguagem. Gente que silencia e ouve. Não podemos ser isso, sob pena de exílio, exclusão. Sob pena de sermos taxados de ridículos, de imorais até. Pois ouvir pode ser um ato de agressão, de má intenção. Então falamos, parlamos, hablamos, em qualquer língua, em qualquer chão.

Diante do vazio do excesso de palavra, o voto de silêncio deveria ser obrigatório. Ensinado na alfabetização, junto com as operações básicas. Voto de silêncio deveria ser nosso arroz-e-feijão diário. Só assim reconheceríamos o valor de cada palavra pronunciada e não a lançaríamos fora feito lixo.


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