"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna de nº 23 - 1ª quinzena de maio de 2007

Por onde andam os clássicos?

          O nome “clássicos” não é algo que passe sem merecer comentário, eu sei. Já tentei fazer isso, em um texto que publiquei em [http://www.letras.ufrj.br/pgclassicas/CVHC.htm], ao qual dei o título de “O lugar dos clássicos hoje: o super-cânone e seus desdobramentos”, e ao qual meus diletos alunos deram o apelido de “Super-cânone”.
          Por isso não vou enfadá-la com repetições que mostrem mais uma vez minha pouca habilidade para lidar com esse tema.
          Por outro lado e apesar de minha pouca destreza, acabei por notar-lhe possíveis adendos e acréscimos que poderiam ser feitos por quem quer que freqüente as livrarias e os sebos.
          A pergunta que me escapou e que tento formular agora é: quem lê os clássicos?
          Quanto a mim, posso até mesmo imaginar e supor, mas não poderia afirmar com segurança. Faltam-me dados, confesso. E às vezes e não raro nossas percepções são surpreendidas pelos dados.
          Mas cá entramos, leitora indulgente, numa livraria – se me permite o prazer dessa companhia especial –, no Centro do Rio. Eu preciso comprar uma Ilíada para dar de prêmio. Pergunto pela Ilíada ao vendedor, contrariando o meu uso e o estatuto do freqüentador de livrarias, que considera desairoso não saber onde ficam as estantes e tem por temeroso deixar escapar um livro deslocado (digamos que despropositadamente) nas prateleiras dos sebos.
          Considerando, porém, que o mais importante é aproveitar a sua companhia, querida leitora, rompo provisoriamente com as regras e dirijo-me ao vendendor.
          Era um vendedor, apenas isso. Não era um livreiro e nem um buquinista, e isso é preciso que fique dito. E tanto melhor para o que pretendo dizer, porque um livreiro ou um buquinista conhecem tanto quem compra quanto o que está sendo vendido; mas o vendedor conhece só o seu público, e o que ele vende é reconhecido por quem compra.
          Perfeita situação para que eu me surpreendesse.
          “Não trabalhamos com livros paradidáticos, senhor”. Não sei se enunciou o vocativo, mas coloco-o aqui para tentar dar algum ritmo à frase. Também não importa muito isso, porque o que me veio é que eu nunca ouvi a Ilíada – a Ilíada, de Homero! – ser chamada de livro paradidático.
          Não deveria, eu sei. Ainda mais acompanhado! Mas não pude conter a tola indignação: “paradidático?!”. Juro, leitora dileta, que tenho agora vergonha de tê-lo dito. Sei que você me perdoa a boca ligeira, embora não a aprecie.
          O vendedor emendou, acho que com certo fundo de constrangimento: “chamamos esse tipo de livro de paradidático ou de universitário, pois é esse o público que o compra”.
          Era um vendedor, já está dito, e não repito. E não lhe interessa o que seja uma Ilíada ou uma Odisséia ou uma Eneida, e nem mesmo Os Lusíadas lhe interessa o que possa significar. A coisa e quem a compra: eis o que vale. E melhor assim.
          Foi dessa forma que percebi, na realidade daquele homem que precisa vender livros para comer e para viver, que os clássicos – permita-me chamá-los assim – são hoje livros que fazem parte das listas de início de ano ou de semestre letivo. Livros para serem comprados e talvez revendidos a sebos que os fornecerão a universitários quiçá mais promissores, por terem mais disponibilidade de procurar por livros e, assim, mais chances de aprender com as prateleiras invariavelmente mal arrumadas dos sebos.
          Por isso, cheguei em casa e imediatamente abri a minha tradução da Ilíada, a do Carlos Alberto Nunes, genial!, feita em versos bem construídos, com ritmo e belas palavras: um monumento, se me é lícito dizer essa palavra que alguns hebetados insistem em desprezar. Além disso, a tradução de Carlos Alberto Nunes, exatamente a que eu procurava na livraria, é agradável de ler. É um livro que poderia ser lido prazerosamente por todos.
          Todos?
          Não, querida leitora. Nem por todos, e nem – dura realidade – por todos os universitários. Não é pelo vocabulário que pode parecer desusado, nem pelas inversões sintáticas, fruto do esforço do tradutor para acompanhar o verso grego, nem pela profusão de nomes que podem ser desconhecidos aos que não tem nenhum convívio com a cultura clássica (e que poderiam, portanto, habitar outro planeta). Não é por nada disso, e posso garanti-lo. O problema que se coloca aqui é mais uma vez o mesmo de sempre: quanto vale a Ilíada? quanto vale a Eneida? quanto vale um clássico que não vira mini-série nem filme americano?
          Mas essa falta de valor que transforma uma Ilíada, que antes reinava na estante dos clássicos, num livro paradidático ou universitário poderia ceder seu lugar, ainda que com grave e lamentável prejuízo, ao prazer de ler um texto poético, intenso e que nos une a um passado que se faz presente no que somos e no que sentimos. E poderíamos, assim, esperar que desse encontro nascesse o reconhecimento da grandeza que já não podemos dizer mais que seja imune ao tempo. O tempora!


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