"LETRAS CLÁSSICAS", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna de nº 25 - 2ª quinzena de janeiro de 2008

Que texto nos interessa? (*)

           A Crítica Textual é uma área que se firmou como definitiva no cenário acadêmico. Institucionalmente é comum que ela tenha ocupado os espaços antes destinados à chamada gramática diacrônica ou à lingüística histórico-comparativista. Mas todos sabemos que sua natureza é bem distinta das dessas disciplinas, e não cabe aqui apresentar esse mapa institucional que facilmente demonstra isso. Mas não seria nem difícil fazê-lo, nem trabalhoso demonstrar como essas alterações tendem a provocar um déficit na formação dos lexicógrafos que antes já dispunham de um tempo tão limitado de estudos na previsão de seus currículos de graduação.
           Uma das causas mais evidente dessa mudança é a importância, talvez exagerada ou obsessiva, que a pesquisa foi granjeando nos meios universitários, mormente nas universidades públicas.
          Essa transposição de interesses, muitas vezes encampada pelo nome ainda merece muito estudo, e creio que não faltará quem o queira fazer.
          O crescimento institucional da Crítica Textual, no entanto, interessa-nos, creio que a todos nós, como fenômeno de robustecimento de uma área dentro de nossa grande área de Letras.
          Nesse movimento de que todos somos testemunhas, destacam-se a obra fundamental de César Nardelli e a formação do Laboratório de Ecdótica, o Labec, que abriga este nosso evento e que completa seu primeiro ano de existência.
          A Crítica Textual exige de quem a pratica um conjunto de saberes que tangenciam várias áreas de conhecimento, tanto das ciências humanas quanto das exatas. É uma complexa rede que serve a um objetivo bem definido, que é servir ao leitor, dando-lhe um texto final, por meio de um estabelecimento, que indique ainda as suas variantes ecdóticas e manuscritas, bem como os escólios e as manus recentiores et alterae .
          Edição. Essa é a palavra chave desse campo que tanto cresce em nossos meios. E temo-las feito abundantemente. Sempre dentro das diretrizes que a Crítica Textual elegeu para si. E são essas diretrizes que passam a nos interessar agora.
          O que pretendo trazer para esta mesa é uma questão que nos coloca frente a frente com a História e com suas teorias; teorias essas que já nos faziam falta quando nos ocupávamos tão-somente das variações diacrônicas das línguas neolatinas ou mesmo das indo-européias.
          Ao fim de nosso exaustivo e prazeroso trabalho, apresentamos ao público ledor um texto publicado que assinamos quase que como autores (no meu caso, exatamente como autor) e sobre o qual dizemos: eis o livro.
          Procuramos, pesquisamos e encontramos o texto. Mas há aí também um ato de julgamento. Um arbítrio que nos é legado e pelo qual temos de responder, e podemos parcialmente fazê-lo, respondendo a pergunta que proponho: que texto nos interessa?
          A missão da Crítica Textual poderia parecer aos menos avisados a de varrer o entulho do tempo, o entulho que nos separa de um texto ideal: o texto autoral.
          Essa perspectiva, conquanto ainda predominante no ambiente acadêmico, torna o aparato crítico um apetrecho documental que serve muito mais para testemunhar e comprovar o árduo trabalho de estabelecimento do que para oferecer algum tipo de subsídio.
          Pode-se argumentar que o aparato crítico, mesmo na perspectiva em que o estamos contemplando neste momento, pode garantir ao leitor mais hábil a oportunidade de refazer o percurso do filólogo e de talvez encontrar uma outra solução para o estabelecimento, seguindo uma lição diferente da adotada no estabelecido. Evidentemente isso pode acontecer.
          O aparato crítico dá ao bom leitor uma ferramenta importante para a leitura qualificada, é certo. Assim como é certo que, na oficina do aparato crítico, as eleições seguem critérios que, nas boas edições, fazem-se explicitar.
          Esses critérios são necessariamente afinados com os critérios do próprio estabelecimento, e esse estabelecimento tem, em seu horizonte um ideal de texto.
          O que se nota – ainda que com freqüência decrescente – é que o texto autoral seja o norte do estabelecimento. Com toda a complexidade que isso possa acarretar.
          Sabemos, todos nós, que um autógrafo não é sempre o melhor texto autoral, que o autor corrige provas, produz edições subseqüentes, e tudo isso que obras como a do Professor César Nardelli nos explica tão bem.
          Aqui chegamos ao ponto de perguntar quem é esse autor diante de seu texto.
          Não falarei, para não enfadar demais esse auditório, dos textos da Antiguidade, onde o autor é uma idealização distante e uma realidade perdida pela inumerável sucessão de cópias. Pretendo, somente, lembrar que esse autor passa, muitas vezes, por meio de seu texto, a uma construção imaginária que, não raramente, influencia consideravelmente as edições de sua obra.
          Muitos de nós teríamos na ponta da língua exemplos para dar de correções que à obra de Machado de Assis ou de Eça de Queirós simplesmente porque determinada construção não estava à altura gramatical ou estilística do autor.
          O que tem interessado à Crítica Textual nesses casos é mais a descoberta do texto do autor do que as razões das correções, que, por outro lado, têm interessado sobremaneira aos historiadores, especialmente a partir das obras de Robert Darnton e principalmente Roger Chartier.
          Para que não fique sem exemplo o que digo, tomarei um exemplo que é clássico nos dois sentidos: o do verso 376 do Édipo Rei de Sófocles, uma fala de Tirésias a Édipo, no conhecido diálogo em que o Rei de Tebas termina por expulsar o cego sob graves insultos.
          O estabelecimento Alphonse Dain, editado pela Ed. Les Belles Lettres, prefere a seguinte a lição:

          Ou gàr me môira pròs ge sôu pesêin
          Pois a tua môira cairá sobre mim (...)

          E registra, no aparato crítico, que a lição adotada provém de um papiro da coleção de Oxirinco, datado do quarto século de nossa Era. No mesmo aparato, registra ainda que, no lugar de me...ge sôu, a histórica edição de Richard Franz Philipp Brunk, de 1786, apoiada num códice sobre o qual a edição de Dain não oferece maiores dados opta por se... g' emôu. O que parece uma opção simples evita a interpretação segundo a qual o verso teria a seguinte tradução:

          Pois a minha môira cairá sobre ti (...)

          Para dizer o mínimo, com essa interpretação, Édipo Rei transforma-se numa peça fatalista.
           Ainda que o editor fornecesse mais informações sobre a fonte de Brunk, seria preciso dizer o que contextualiza opções tão diversas, capazes de ensejar concepções completamente diferentes da obra.
          Interessaria, aqui, saber se é possível considerar uma veleidade fatalista (ou não) de algum ponto da transmissão textual, suas motivações e seus compromissos.
          De pouco vale ter essa informação oferecida que, quanto à Crítica Textual tradicional, nada pode declarar sobre o texto autoral e que, quanto à leitura, oferece uma possibilidade da qual mal se pode perscrutar a origem e as motivações.
          Esse, de resto, é o próximo grande desafio que a Crítica Textual terá de enfrentar, o de pensar o texto para além dos dois pontos já considerados, o de autoria e o da edição crítica. O desafio é, enfim, o de trazer para o centro do estudo a transmissão textual, sempre presente perifericamente nas edições, e os dados da recepção, na maior amplitude possível.
          O estudo da transmissão textual deve incluir as hipóteses acerca das condições de cópias, edição ou tradução dos textos, bem como nas hipóteses sobre as intervenções, e o estudo da recepção deveria concentrar-se nas hipóteses de motivação da transmissão.
          Colocar a transmissão e a recepção no centro dos estudos ecdóticos, tirando-os da periferia, por vezes ornamental, é multiplicar o texto pela sua trajetória, e dar ao caminho a mesma importância que à chegada.
          Analogamente ao interesse que os historiadores têm pelas ferramentas que a ecdótica gerou ao longo dos séculos e que a Crítica Textual atualizou, a mesma Crítica Textual poderia agora voltar-se para os historiadores e deles tomarem alguns instrumentos com os quais seria possível lidar com esses dois elementos que necessariamente devem ser trazidos para o centro das atenções.
          Uma edição considerada “ruim” dos Lusíadas, por exemplo, pode ganhar o interesse de registrar as marcas de um tempo e certamente depõe muito mais acerca da imagem de Camões e até mesmo de Portugal que tem toda uma geração do que um texto mais de acordo com as edições em vida, por exemplo. Esse é também um trabalho da Crítica Textual.
          Finalizo minha fala desejando ao LABEC muitos anos de vida, que cresça e frutifique em produções editorais, mas que passe imediatamente a caminhar ao lado de nossos colegas historiadores, para que possamos olhar o tempo de frente, angariando para nossos estudos os interesses que colocaram o texto na história e que nos trouxeram até nós.

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(*) Apresentado na UFF, por ocasião do primeiro aniversário do LABEC


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