"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/11/2008
(próxima coluna: 26/11)

Daena

No livro "Profanações", o pensador italiano Giorgio Agamben fala de um mito iraniano chamado Daena. Eis as palavras de Agamben: "Quem preside ao nascimento de cada ser humano é um anjo, chamado Daena, que tem a forma de uma belíssima jovem. Daena é o arquétipo celeste a cuja semelhança o indivíduo foi criado e, ao mesmo tempo, é a muda testemunha que nos espia e acompanha em todos os instantes de nossa vida. Contudo, o rosto do anjo não continua igual no tempo, mas, como o retrato de Dorian Gray, vai se transformando imperceptivelmente a cada gesto nosso, a cada palavra, a cada pensamento. Assim, no momento da morte, a alma vê seu anjo, que lhe vem ao encontro transfigurado, dependendo da conduta da sua vida, ou numa criatura ainda mais bela, ou num demônio horrível, que sussura: Eu sou tua Daena, aquela que os teus pensamentos, as tuas palavras e os teus atos formaram".

Confesso que gelei diante desse texto. Assumindo o mito como verdade (e me parece que os mitos são formados por verdades que se transmutaram em algo mais alegórico, portanto perenes), a consciência pesa diante da inevitável pergunta: estará minha Daena precisando de uma recauchutagem? Com que aparência ela me receberia se eu morresse agora?

Mais que a culpa, cristã ou não, pesando nos ombros, o que me chama a atenção nessa possibilidade de existir alguém ou algo, mudamente nos vigiando, mudamente refletindo o que somos de verdade, é a assustadora idéia de que possamos nos encontrar com nossa imagem verdadeira, com aquela que está atrás do espelho, nós que somos tão feitos de aparência, tão apegados às superficialidades da pele.

Daena nos propõe a descoberta daquilo que nos forma realmente: gesto, palavra, pensamento. Acho que nossa Daena se transfigura em sombra e feiúra quando gesto, palavra e pensamento se contradizem. Enganam um ao outro. O gesto acaricia enquanto o pensamento agride. A palavra falseia o pensamento. O gesto desmente a palavra. Inúmeras hipocrisias que praticamos diariamente, seja em nome do bem viver, seja em nome da vaidade. O fato é que nossa Daena se contorce, envelhece e demoniza-se à nossa espera. É de assustar.

Claro, é improvável que ela venha sem imperfeições, mas feito algumas atrizes de cinema (exemplos máximos da beleza na juventude que continuam belas sem artifícios plásticos inseridos no corpo), a nossa Daena pode saber envelhecer, se nós soubermos envelhecer, se soubermos como adequar gesto, palavra e pensamento à verdade do sentimento, da ação.

Daena é um mito, de uma terra distante, quase mítica também. Não corresponde diretamente à fé cristã, mas pode servir de alerta, de cuidado, de auxílio para que nossa vida não seja um rio prenhe de deformações.

Mesmo para os céticos, os que terminam sua vida na morte, Daena pode servir de história para assustar os filhos...

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