"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/3/2009
(próxima coluna: 9/4/2009)


AVES AVESSAS

Três mulheres. Três aves avessas pairando sobre a calçada na hora da Ave Maria. Passo por elas diariamente, incógnito. Nos dez segundos que as vejo o mundo estaciona, fico translúcido, lubrifico minhas engrenagens de homem sério. São três mulheres da vida, varrendo a hipocrisia vespertina para debaixo do asfalto.

São três fêmeas fabricando fantasias, violências, traições, algum carinho obtuso, talvez alguma fala sensível. Desconheço-lhes a voz, mas imagino que sejam metálicas, como são metálicas as armaduras dos machos que lhes compram o serviço. Talvez sejam vozes fúteis e fortes, como convém às prostitutas de calçada.

Três Mulheres. Três cruezas que não sei a origem, mas que desarticulam o crepúsculo e a ida das gentes para as casas. Sobretudo dos homens vazios de certeza e fidelidade. Três redes pescando vontades nunca ditas, carinhos mal resolvidos. Três armadilhas de carne barata cumprindo a velha sina humana do sexo fácil, do sexo pelo sexo, dos ataques à moralidade judaico-cristã impregnada em nosso dia-a-dia.

Três mulheres. Três incertezas que passeiam no final da rua Anita Garibaldi. Imagino Anita mirando essas mulheres. O que diria? Como sentiria o peso dessa falsa liberdade que elas aparentam. Três onças enjauladas na mais antiga das profissões, na mais negligenciada atividade feminina.

São cortesãs pobres apesar de não demonstrarem desleixo ou abandono. Fazem da luz do final da tarde espelho afrontoso às outras fêmeas familiares. Nunca vi polícia ou agressões. Meu tempo com elas é escasso, como já disse. Resume-se a uma passada diária, a um canto de olho, a uma brevíssima apreensão dessa cantata urbana.

Três mulheres. Três feras diluídas na paisagem. Um dia sentadas sobre o muro, noutro falando ao celular, noutro negociando com um macho caído em tentação. Três árvores seguras de si, talvez ocas, quem sabe esfareladas por cupins antigos, mas por fora ainda donas de cascas brilhantes. Três firmezas imprevisíveis, defendendo a vida, quem sabe algum filho em casa.

Disseram-me certa vez que uma delas tem marido. Enquanto ele trabalha, ela trabalha também. Fiquei sem poder comprovar a veracidade da história, mas se for real, a vida continua a ser a melhor das literaturas.

Três mulheres. Três geometrias intensificando os pedestres. Às vezes, vejo apenas uma, noutros dias, duas. Decepciono-me sempre que não estão juntas. Parece que falta harmonia ao meu final de tarde, à minha solidão de quase meia-idade. Pior é quando não está nenhuma das três. Meus dez segundos se perdem, meu anoitecer antecipa-se. Falta-me parte de um acontecimento diário. Falta-me a certeza de que as rotinas permanecem inalteradas.

Três mulheres. Três presenças trotando o cimento e alma úmida da cidade dos príncipes. Três plebeias maculando nossa doce germanitude e trazendo para o rés-do-chão as altitudes míticas das deidades. Três silêncios agredidos, agredindo, desagradando os que ficam, os que passam, os que invejam a força tanta destas três mulheres.

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