"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 27/7/2009
(próxima coluna: 9/8/2009)


RECEITA PARA SE TER IDEIAS

Você está estranho? Vazio? Necessita que o impossível seja tocado? Que o mundo não seja apenas um trânsito azul? Você deve conseguir de presente uma faca de estanho com cabo madrepérola. É a única que não infecciona, então você poderá fazer a operação. Olhe o objeto pontiagudo, verifique se o cabo encaixa-se perfeitamente na mão.

Mas antes é preciso costurar a boca, lacrar os ouvidos, selar o nariz. Faça isso sem causar alarde. Não se preocupe com a respiração. Ficarão apenas dois dos sete buracos de sua cabeça. Os olhos: a janela da alma, o clichê, os olhos cansados que nada mais observam, que tão pouco capturam fora da sistematização absurda do caos.

Com a faca de estanho, retire cuidadosamente os olhos, coloque-os na geladeira para não estragarem. Deite-se e pelo oco da cara despeje as ideias. Calmamente. Cuidadosamente para que não se percam na transferência. Para que não se sujem pelo chão sujo de sua casa.

Porém antes desse procedimento, descubra qual elemento que o rege. Se for água, dilua as ideias com água potável, um pouco de sangue e orvalho. Em não conseguindo o orvalho, lágrimas servem. É bom chorar antes de retirar os olhos. Pense nos cachorros chineses e sua sina de boi ocidental. Isso lhe proporcionará excelentes lágrimas para a diluição das ideias.

Se acaso seu elemento for o fogo, talvez fique um pouco mais fácil. Queime alguns livros, os mais canônicos. Cuspa em cima. Dessa massa de cinza e saliva faça um mingau, acrescente as ideias. Aos regidos pelo fogo, permite-se acrescentar algum sentimento amarelo. Fulvo, como querem os puristas. Coragem. Ambição e seus contrários fazem parte dessa espécie de sentimentos fulvos. Mas não abuse. Alguns místicos nigerianos afirmam que a morte também é amarela e regida pelo fogo, portanto, cuidado.

Sendo seu elemento a terra, melhor fazer a transferência das ideias deitado na terra mesmo. Encontre raízes de gramíneas, as mais vulgares, e plante-as dentro de sua cabeça. Faça uma espécie de colchão. Depois, ajeite cuidadosamente as ideias lá dentro. Fique imóvel durante duas horas e cinquenta e quatro minutos, que é o tempo necessário para o enraizamento das ideias.

Por fim, se o seu elemento for o ar, acrescente a cada ideia uma aura de águia, libélula, morcego. Não há necessidade da presença dos bichos, mas apenas a sua lembrança vestindo cada ideia a ser transferida.

Descoberto seu elemento e feitos os procedimentos adequados, execute a transferência das ideias. Depois pegue os olhos que você deixou guardados na geladeira e recoloque-os no lugar original. Use a faca de estanho para encaixá-los. Durma e não sonhe.

Caso o sonho insista em aparecer na memória, refaça toda a operação novamente até conseguir ter uma noite inteira de escuridão. Só passando por esse processo você conseguirá ser um ser de ideias amplas e irrestritas pelo resto de sua vida.

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