Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 92 - 2 ª quinzena setembro
(próxima coluna: 10/10)


O DOMADOR DA MONTANHA


Obra inédita

Capítulo 5: ANL, O IMORTAL

          ANL, chamado agora Shakya Senge, pensou:
          — Vou praticar o Mahayoga e realizar o nível de vidyadhara da longevidade. Vou atingir o supremo nível de vidyadhara de mahamudra.
          Por isso ele foi em busca do grande mestre Manjushrimitra, que morava no monte Malaya.
          Chegando lá, pediu ao mestre Manjushrimitra a transmissão de Mahayoga, mas o mestre Manjushrimitra lhe disse:
          — Ainda não estou preparado para ensinar você. Você deve ir ao ossuário chamado Gruta do Sândalo, onde mora a monja Kungamo. Ela é uma dakini de sabedoria detentora da grande bênção e capaz de conferir a transmissão externa, interna e secreta. Vá até lá e peça a transmissão.

          Assim ANL foi ao ossuário da Gruta do Sândalo. Lá, ele encontrou uma serva Jovem Dasmsel, que era uma encantadora das águas. Ela estava trabalhando.
          ANL aproximou-se e lhe deu uma carta em que pedia a concessão da transmissão externa, interna e secreta de Mahayoga.
          ANL esperou, esperou, mas não obteve resposta.
          Então ele foi de novo à encantadora de águas e perguntou:
          — Você se esqueceu de minha mensagem?
          Outra vez, aquela mulher não disse nenhuma palavra.
          Diante do silêncio, aplicou ANL seu poder de concentração na expiração.
          Sim, ele estava esperando. Mas aquela jovem nada dizia.

          Então a jovem pegou uma faca de cristal e abriu um grande golpe no seu próprio peito, e lá dentro ANL pôde ver os 42 deuses pacíficos na parte superior e os 58 deuses irados na parte inferior: aquela jovem mal-vestida e desdentada vividamente exibiu as 100 deidades dentro de si.
          — Esta deve ser a monja, pensou ANL.
          Então ele começou a prosternar-se para ela e a fazer circum-ambulações em torno dela.
          A velha então lhe disse:
          — Eu sou apenas uma serva. Entre.
          ANL entrou na Gruta do Sândalo e lá encontrou a monja Kungamo.
          Ela estava sentada num trono. Ao seu redor dispunham-se os dakas. Ela se ornava de jóias feitas de ossos e nas mãos segurava uma cuia de crânio humano e um tambor de madeira. Ao seu redor havia 32 servas.
          Ela estava realizando um festim de oferendas.

          ANL lhe fez um oferecimento de mandala, prosternou-se e circum-ambulou a monja Kungamo.
           Depois lhe pediu as transmissões secretas.
          Ela então transformou ANL na sílaba HUNG e o engoliu.
          Ali dentro, ela conferiu-lhe as transmissões na mandala de seu corpo. Depois, expelindo-o através de lótus secreto, purificou-o de corpo, fala e mente.
          Kungamo lhe outorgou a bênção da longevidade e vários outros poderes.
          Depois disto, ANL recebeu transmissões e ensinamentos de vários mestres.
          Inclusive de Nagarjuna.

          ANL então pensou: “Eu realizei o nível de vidyadhara da imortalidade. Tenho de levar todo o povo da Udddiyana e da Índia para o Buddhadharma”.
          Assim pensou.
          Mas para praticar apropriadamente o mantra secreto ele tinha de ter uma consorte.
          Por isso ele partiu para Sahor, onde o rei de Sahor tinha uma filha chamada Flor Mandarava que era belíssima, de dezesseis anos, dotada de todas as marcas.
          ANL tomou-a como consorte.

          Ao Sul do Monte Potala, onde fica o palácio de Avalokiteshvara, ficava a gruta de Maratika, de frente para o Sul.
          Ali caíam chuvas de flores, e os arco-íris a envolviam de cores. Um perfume de incenso subia para o ar. Era uma gruta de sândalo, abençoada pelos detentores das três famílias.

          ANL e sua consorte foram para esta gruta. Ali abriram a mandala de Amitayus e realizaram a prática de vidyadhara de longa vida.
          Após três meses, tiveram a visão de Amitayus, que colocou seu vaso de longa vida sobre a cabeça do casal, e o fez beber do néctar de longa vida, e assim transformou seus corpos em corpos-vajra, ou seja, além do nascimento e da morte.

          Depois disso, o casal, transformado em mendigos, foi esmolar na cidade.
          Mas o povo da cidade reconheceu ANL e ficou enfurecido:
          — Este é o homem que matou os machos e possuiu as mulheres, e depois seduziu a filha do rei, adulterando a casta real. Vamos castigá-lo!

          Dizendo isso, o povo amarrou o casal e o queimou, numa fogueira de sândalo, em praça pública.
          Aquela fogueira ardeu mais de nove dias e noites sem parar, aumentando suas brasas, até que se agigantou de tal forma que incendiou tudo, até o palácio real.
          O óleo derretido pela fogueira se transformou num lago de flores lótus, e sobre uma bela e grande flor de lótus apareceram ANL e sua consorte, que permaneciam limpos e frescos.
          Diante de tal milagre, o rei e seus ministros começaram a rezar, e as chamas se acalmaram, e todas as casas e o palácio real reapareceram, belos mais que nunca.

* * *

          Voltemos ao início dessa narrativa. ANL estava na sua gruta e aquela cavalgada se aproximava. Já fazia algum tempo que ele morava naquelas montanhas, em solidão. Procurava um lugar onde pudesse estar quieto, meditar, em segurança. Mas não havia calma continuada, não havia segurança completa em lugar algum. Os inimigos estavam em toda parte, podiam chegar a qualquer hora. Ele sabia. Por isso, precisava ajustar aquela luneta para ver quem eram aqueles longínquos seres que se aproximavam, à distância.
          Sim, uma pequena caravana se aproximava, bem longe. Através de sua luneta agora podia vê-los: eram cavaleiros, guerreiros, desconhecidos. Ainda iam levar algum tempo para achá-lo, ali. Mas certamente acabariam encontrando-o.
          ANL começou a considerar sobre o que faria. Poderia fugir. Porém não mais agüentava a idéia de viver fugindo para sempre. Ele já tinha vindo das longínquas regiões do Sul, onde nascera.
          Mas ANL sabia que em nenhum lugar do planeta havia a mais completa paz naquela era degenerada. A época estava terrível. Ele por isso já tinha planos de viajar mais para o Norte, mais para o alto, até as elevações geladas das grandes montanhas, os Himalayas, as rainhas das montanhas. Para o monte Khailás, talvez, onde nasce o rio Sindhu. Sim, talvez lá pudesse permanecer em paz, em meditação, sem preocupar-se com sua própria defesa e segurança, sempre ameaçada.
          Eram cerca de trinta cavaleiros pesadamente armados com chuços, espadas, lanças e escudos.
          ANL agora os via claramente.
          Eles pareciam saber exatamente onde ele se encontrava, pois marchavam em sua direção, já subindo os flancos da montanha.
          ANL resolveu esperá-los, armado de sua lança. Não demorariam a encontrá-lo, ou mesmo já o tinham visto.
          
          O vento do fim da tarde vinha chegando, frio e fino, vindo das geleiras do sul. As nuvens eram raras, ao por do sol. As grandes aves arribavam para seus lares, em raros e altíssimos grupos. Um estranho silêncio permeava a solidão dos altos picos nevados, dali vistos.

          ANL sentou-se na entrada da gruta, em vajra ashana, e meditava.
          
          Na sua meditação, entretanto, ele não pressentia nenhuma agressividade, nenhum ódio ou perigo por parte daqueles homens que subiam a montanha. Sabia que eles o estavam procurando, via-se em contato com eles, e lembrou-se da porqueira sua mãe, e de seus irmãos, em vida passada.
          
          Sabia que ali se cumpriria a sua promessa feita anteriormente.

* * *

          ANL passou a noite toda em meditação.

          Quando o dia nascia, os cavaleiros estavam em sua frente.
          Eram guerreiros tibetanos, que tinham vindo à sua procura, a mando do rei Trisong Detsen.

          Estavam todos pesadamente armados e desceram dos seus cavalos em sua frente.

          Mas ANL não saiu de sua meditação.

          Então aqueles homens se sentaram, à espera e em silêncio.
          O cozinheiro deles foi até uma pedra onde acendeu a pequena fogueira e preparou o chá. O fogo, naquela época, era feito com o uso de uma espécie de lente.
          Quando o chá estava pronto e quente, serviu ele numa chávena de madeira que trazia, com base de prata e ouro, presente enviado pelo rei do Tibet.
          O chá quente foi posto em frente a ANL, que meditava, os olhos semi-cerrados.

          Quando, saindo de sua meditação, ANL fez uma reverência ao chá e empalmando a chávena bebeu um pouco, perguntou:

          — O que desejam vocês, jovens guerreiros tibetanos?

          Tendo feito três prosternações, respondeu o comandante tibetano:
          — Nosso rei nos manda a você, ó Nascido do Lótus, para pedir que venha ao Tibet a fim de implantar e firmar a religião.
          — Por que isso? quis saber ANL.
          — O Tibet, começou o guerreiro a contar, é dominado por demônios. Nenhum monge ou sacerdote conseguiu difundir a religião nas terras nevadas. Nosso rei convidou o venerável monge indiano Shantarakshita para trazer a religião para nossa bárbara terra, mas seis meses depois de ter o venerável monge indiano Shantarakshita ter chegado ao Tibet os deuses e demônios se revoltaram e grandes relâmpagos vieram do monte Marpori destruindo as colheitas, e começaram os desastres, doença, fomes, seca e tempestades de granizo em todo o país. Por isso os ministros exigiram que o venerável monge indiano Shantarakshita fosse expulso do Tibet, o que aconteceu. O venerável monge indiano Shantarakshita voltou para essas terras, mas antes de partir aconselhou ao nosso rei Trisong Detsen que mandasse convidar o senhor para subjugar os demônios e implantar a religião na Terra das Neves.

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