JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL (clique no título da obra para ler a fortuna crítica).
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Coluna de 1/12

A poesia universal e atemporal de Affonso

Dois episódios recentes dão muito bem as dimensões da universalidade e da atemporalidade deste gênero por excelência de literatura que é a poesia. Quando ainda assinava uma coluna no suplemento semanal sobre livros do jornal carioca O Globo , o poeta e crítico mineiro Affonso Romano de Sant'Anna escreveu alguns textos antológicos sobre a viagem que fez ao Irã, tendo tido a oportunidade de conhecer a Pasárgada original dos persas e visitar o túmulo do grande guerreiro conquistador Ciro, do qual reproduziu para seus leitores, a grande maioria dos quais jovens sequiosos por novidades e curiosidades, o dístico filosófico e profundo que serviu de epitáfio ao imperador: “não lamente, oh mortal, / aquele que aqui jaz / pois ele fez tudo o que fez / e reinou na guerra e paz”, na tradução de Affonso inserida em seu poema Pasárgada (in Vestígios, Rocco). Ao lê-lo, a primeira lembrança que me ocorreu foi do clássico soneto Ozymandias (nome grego de Ramsés) de Percy B. Shelley, o nobre gênio da poética inglesa, no qual o marido de Mary, imortalizada por seu romance Frankestein, atribuiu ao Faraó o desaforo: “Olhem para minha obra, seus poderosos, e se desesperem!”

Entre os sábados em que esses textos foram publicados e este domingo muita água passou por debaixo das pontes, mas a dura verdade transmitida pela experiência de Ciro e Ramsés viajou pelo globo terrestre e pelos séculos, passando por Shelley e também por Manuel Bandeira, um dos maiores criadores de poesia no Brasil em todos os tempos e de quem sobrevive o genial poema que adota a cidade persa de Pasárgada como tema: “Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei”, certo? Passaram também pelos computadores de vários brasileiros, como Bandeira e Sant'Anna, um poema da lavra deste, vergastando a mentira como prática padronizada (infelizmente) na condução dos negócios públicos no Brasil. Escrito na gestão do general Figueiredo, canto do cisne da ditadura militar, contra a qual o poeta militou, os versos parecem tratar do Brasil contemporâneo, onde gestores públicos acusados de corrupção, chamados a se explicar nas CPIs congressuais, apelam, sempre com sucesso inexplicável, à Justiça para que esta lhes garanta o direito de... mentir.

É muito representativo – e o preclaro leitor vai permitir a este escriba mais esta licença crítica – que felizmente este País, em que se recorre à Justiça, sempre com sucesso, para insultar o distinto público com o direito de faltar à verdade, esta compareça, de forma indelével e elegante, nos dois volumes editados pela L&PM da Poesia reunida (de 1965 a 1999) do jornalista que foi a Pasárgada e visitou a última morada do conquistador da Ásia antiga. Que também é um scholar respeitável, um professor de talento reconhecido e apregoado e, sobretudo, um dos críticos mais equipados nesta língua de Camões e Machado.

Já é a segunda vez que se reúne a poesia completa de Affonso Romano de Sant'Anna. A primeira foi em A poesia possível (Rocco, 1987). Uma coletânea de seus Melhores poemas foi incluída na competente e oportuna coleção da Global Editora. Certamente, sendo o poeta prolífico e jovem, outras reuniões e antologias virão a lume, coisa mais que oportuna necessária neste Brasil de poetas demais e leitores de poesia de menos. Conservado seu estro, mantido seu sucesso, inesgotado seu brilho de professor e exegeta, nós, seus leitores, ainda seremos premiados com excelentes oportunidades reservadas a alguns poucos eleitos, uma bênção também para seus colegas menos aquinhoados, pois um poeta que se edita num mercado em que a poesia fica à margem lutando, ainda assim, contra alguma oportunidade de naufragar, a oportunidade que um grande tenha será sempre uma chance para o menor.

Tristão de Athayde, o mais festejado dos críticos literários do Brasil, viu em seu colega mais jovem o oposto do portenho Jorge Luís Borges, que se trancou numa torre de marfim para produzir uma obra poética inefável e sem dúvida bela, mas também percebeu entre os dois uma semelhança que os irmana: a capacidade de ser universal, de pertencer ao “planetarismo poético”, que cada um deles tinha e tem. No exíguo espaço que me cabe para falar de obra tão completa e vasta, peço vênia para citar os derradeiros versos de seu poema Que país é este?, que escolhi para figurar na antologia Os melhores poemas do século 20, que organizei para a Geração Editorial em 2001. “Povo / não pode ser sempre o coletivo de fome. / Povo / não pode ser um séqüito sem nome. / Povo / não pode ser o diminutivo de homem. / O povo, aliás, / deve estar cansado desse nome, / embora seu instinto o leve à agressão / e embora / o aumentativo de fome / possa ser / revolução.” Assim se faz a melhor poesia: com militância, mas sem concessões.

Poesia reunida 1965-1999 (2 volumes), de Affonso Romano de Sant'Anna, L&PM, 2005, 664 pp

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