Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 107 - 1ª quinzena maio
(próxima coluna: 25/05)


TRÊS PALAVRAS

               Quando ouvi aquela belíssima canção, vinha atravessando o Largo do Machado.
               Nada mais pesadão, cafona, sentimental e antiquado do que as “Três palabras”, de Osvaldo Farrés.
                Mas nada mais belo.
               Bela simplicidade, breve, minimal, essencial. Clássico. É daqueles boleros que ninguém sabe por que nunca deixamos de ouvir, de amar. Todo cantor que se preze pode interpretá-lo com novas nuances, novas roupagens, novas colorações, novo tempo.
               Quando ouvi aquela belíssima canção, vinha atravessando o Largo do Machado.
               Era um cantor popular que fazia vender seu disco, que comprei: Rômulo de Alencar, se chamava. Um senhor magro, de cabelos brancos, e o CD independente tem, como única identificação, seu telefone celular: (21)9517-5683.
               Os boleros como “Três palavras” de Osvaldo Garrés foram interpretados por grandes nomes como Nat King Cole, Doris Day, Bing Crosby, Johnny Mathis, Maurice Chevalier, Plácido Domingo, Edith Piaff, Katina Ranieri, Pedro Vargas, Toña La Negra, Lucho Gatica, Olga Guillot, Sarita Montiel.
               Mas nunca me pareceu tão surpreendente belo como na voz de velho do sr. Rômulo de Alencar. Talvez devido ao tempo adotado, lento, à interpretação dolorida, funda, vinda do profundo do obscuro som. Sem recursos, pura paixão, sua voz de velho fez ali o essencial modular da dor e do amor.
               Os boleros de Osvaldo Garrés continuam sendo ouvidos e sempre que acontecer o aparecimento de um cantor como Caetano poderão acender as chamas dos nossos corações.
               Osvaldo Farrés, que passou residir nos EUA em 1962, nasceu em Quemado de Guines, Cuba, em 13 de janeiro de 1902, e faleceu em Nova Jersey, EUA, em 22 de dezembro de 1985. Foi carteiro, estofador, decorador, vidraceiro e pintor de paisagens. Teve um programa de rádio (que depois chegou à televisão) chamado "Bar melódico de Osvaldo Farrés", pelo qual passavam os artistas cubanos dos anos 50. Assim começa:

Oye la confesión
de mi secreto,
nace de un corazón
que está desierto.

               O texto começa com uma confissão de amor (“ouça a confissão”). Que é um segredo, e o transforma num enigma. “Ouça a confissão de meu segredo”, diz o autor, nas três primeiras palavras. O “segredo” impõe o clima de intimidade, de lirismo absoluto, de útero, se se pudesse dizer. Não é “só” a confissão de amor, mas de um amor secreto. Os amores secretos são os de que não se podem falar, não se podem publicar, não se podem explicitar. São os proibidos, os imorais, os ilegais, os proscritos, os míseros. Perseguidos pela polícia, pela sociedade, quando se transformam o amantes em terroristas, quando eles se encontram na vida com amor e com ódio, no vão da morte se encontram escondidos. São os maiores, os mais fundos, os mais graves. Os que nascem de “um coração que está deserto”. Ou seja, os que nascem no deserto.

Con tres palabras
te diré todas mis cosas,
cosas del corazón
que son preciosas.

               O amado profere que bastam três palavras para ele, que com três palavras apenas ele conseguirá atingir o coração da matéria, da materialidade amante, da substancialidade amorosa da vida. Por que todas as “suas coisas” residem unicamente ali, em três palavras, que resumem, que unificam, que sintetizam, que manifestam todo seu universo interno (o deserto), que são “as coisas do coração”, “as coisas preciosas”.

Dame tus manos, ven,
toma las mías
que te voy a confiar
las ansias mías.

               E diz “dá-me tuas mãos” que está pedindo socorro, ou seja, preciso de ti, socorre-me e “vem”. Não existe força maior de amor do que a forma verbal: “vem!” “Dá-me tuas mãos, vem, toma as minhas”. Não só pede, como oferece o socorro amante. E o poder crucial dessa união, dessa confissão, desse segredo, está no “confiar”, “que te vou confiar as minhas ânsias”. Confiar é ter confiança, ter fé, esperar, acreditar, pôr confiança, ter esperança em alguém. Mas é também comunicar, transmitir em confiança. Daí o confidenciar, o entregar-se em confiança, o fiar. Em quem mais se pode ter confiança? Sim, porque o amante é um crédulo, ele acredita. Que depois de dizer: “Ouça a confissão de meu segredo”, diz: “Somente minhas angústias”. Ou seja: há dúvidas, não há certeza, não há paz.

Son tres palabras,
solamente mis angustias,
y esas palabras son:
cómo me gustas.

               A emoção solitária, isolada, o clima de intimidade, a confissão as frases soltas, a alma solta, as palavras e sugestões imprecisas, mais musicais do que idéias. A poesia pode comunicar-se na sua musicalidade, mais sentida do que compreendida. Pois na música está o elemento significativo essencial dos amantes.
                Aquela belíssima canção vinha atravessando o Largo do Machado.

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