Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 109 - 1 ª quinzena de junho
(próxima coluna: 25/06)

DIADORIM, LIBERTAÇÃO E ALIENAÇÃO

Embora nascido na década anterior, o Diadorim de “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa representa para nós a individuação violenta e o movimento de revolta da década posterior de 1960 que vai dos Beatles à revolução dos estudantes parisienses, passando pela contracultura e pelo movimento hippye. Diadorim sai do sertão pelo pórtico de universalidade que só a “grande” (e não a “trivial”) literatura possui. As qualificações do texto, seu valor formal na acusação e negação da realidade se baseia na transmanência artística, no fato de que a arte se emancipa na sociedade. A arte cria mundo que vai negar e acusar, o mundo da realidade: o compromisso político da arte parte de uma prévia alienação, a realidade é sublimada como veículo de função crítica.

A transcendência da realidade imediata destrói a objetividade reificada das relações sociais estabelecidas e abre uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjetividade rebelde.

Essa “subjetividade rebelde” faz a individuação máxima de Diadorim, a negar a realidade na travessia da Terceira Margem. A “forma estética” é, portanto, resultado da transformação de um dado conteúdo social “num todo independente”. A obra é extraída do processo constante da realidade e assume significado e verdade. Representa a realidade onde subsiste para tornar-se autônoma, a arte denuncia a realidade de fora, através da forma e não pelo conteúdo ideológico: É a forma que subverte “a sua contribuição para a luta de libertação que reside na forma”.

O problema estético é que o real, definido a partir da desrealização da obra de arte, é quebrado para se questionar e se definir o que é real. “O mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade” (Marcuse), já que nesta os indivíduos se acham alienados.

A arte empenha-se na percepção do mundo que aliena. Os indivíduos da sua existência e atuação funcionais na sociedade estão comprometidos numa emancipação da sensibilidade, na imaginação e na razão em todas as esferas da subjetividade e da objetividade. A transformação estética torna-se um veículo de reconhecimento e acusação, pressupõe um grau de autonomia que desvia da arte do poder mistificador do dado concreto e a liberta para expressão da sua própria verdade.

Enquanto o homem e a natureza não existirem numa sociedade livre, as potencialidades reprimidas e distorcidas só podem ser representadas numa forma alienante. O mundo da arte é o do outro princípio da realidade, o da alienação consciente — e só como alienação que a arte cumpre sua função cognitiva: comunica verdades não comunicáveis noutra linguagem: se contradiz. (citações em: MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa, Edições70, 1981. 93p.)

A posição no texto de Diadorim se define na e para a vingança, punição da e pela morte do pai, ambigüidade daquela sua condição, seu destino para a morte. Tudo o leva a um resultado trágico. O exercício da liberdade é sua tragédia, e nele é condição de possibilidade alienada: “só como alienação a arte cumpre sua função cognitiva”. Diadorim feito vítima e herói. Sua situação romântica, travestida por alto grau de negação do real (veste-se de homem? passa a sê-lo? esteja verossímil no romance), e é no romance como um todo que é transreal, travesti, e se aliena no monopólio da realidade. Na contextualidade do mundo ficcional, a libertação tem como preço a morte (afinal a culpa é sempre certa, disse Kafka), como suicídio, a procurada, a sabida (tal como a de seu irmão Aquiles). Nossa morte não é trágica, porque nada sabemos, inconscientes, algo vago, adiado. A catástrofe inconciliável da morte com data marcada é a morte querida e conhecida. E Diadorim já se sabia morto, anulado, privado de seu ser: um não-ser. Não podia assumir sua verdadeira natureza porque não a tinha, nem negá-la. Diadorim negou, superou sua negação. Na superação de si reside seu maior protesto, como superação da realidade, como alienação revolucionaria libertária. “Carece não ter medo” significa, lá, “carece morrer”. A superação da morte revoluciona a realidade, se choca com a nossa natural sede de viver. Fomos programados para viver, não para morrer, assim como fomos programados para ser controlados, a obedecer. A individuação violenta de Diadorim parte da subversão daquela ação volitiva em prol do superar-se da consciência política. A violência se organiza para que a racionalização, para o controle e a repressão que engendra uma violenta auto-repressão, como a de Diadorim. A superação daquela auto-repressão só se dá na morte. Ante à ruptura da destinação dos deuses no Olimpo, a ruptura dos dígitos dos computadores. A morte subversiva, alienante. A arte subverte com esta alienação. A morte é a negação da vontade da segurança individual, a quebra dos eixos do monopólio do condicionamento. A morte é a superação por antítese da consciência comunicativa e da consciência política. Nada mata a morte. A morte mata a ironia, mata a tragédia (antes da solução cômica). A morte antecipa o irresoluto. Somos prisioneiros (diz a morte) do sistema de vida que nos foi dado pronto. Nada somos (embora é o todo que desejamos): “Não somos nada, tudo é que procuramos” diz Hoelderlin. Temos de tentar ouvir nossa determinação e nossa esperança.

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