"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA


Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 26/10/2010
(próxima coluna: 9/11/2010)


A atriz

Eu conheci uma atriz. Ela não não estava no palco. Estava na plateia, ao meu lado. Sou homem de sorte. Ela era mais que atriz: petúnia, turmalina, nêspera. Ela sorriu e disse que fazia teatro e o teatro se fez: Jocasta, Desdêmona, longa jornada noite a dentro. E ria mais, a atriz. Rio sobre mim, melhor: mar, daqueles da Odisseia, daqueles que acariciam sereias, ondinas, que fazem de marinheiros meninos surdos e seduzidos. Eu conheci uma atriz. Não estava representando, não estava em seu território sagrado proferindo as sacras palavras de alguém nem seguindo a direção de um outro. Estava ali, humana na inteireza, resoluta ao meu lado, inteirando-se de quem eu era, do que fazia, de como vim parar ali.

Minha voz cadente na vergonha de sempre, quase se encarcera ainda mais dentro de mim. Respondi, entre as respirações, que eu fazia mundo com as palavras. Aquelas mesmas que a ajudavam a construir mundo sobre o palco. Ela enterneceu-se mais ainda, como se eu fosse jardim. Desses que estão sendo abandonados pela falta de tempo de seus donos. Ela olhou-me como se fosse retirar de mim matos nocivos, cantos escuros, umidezas perenes que me compõem.

Naqueles minutos que conversamos, eu fui a Ursa Maior. Fui explosão enxergada apenas pelos olhos solares da atriz. Ela confessou-me seu nome, um tanto das viagens, aproximações com cinema, TV. Mas o que a fazia pedra, sol, mar na completude, era aquele lugar ali, ela era mulher que gesticulava, que fazia das mãos origamis de carne, talvez com algum suor, alguma saliva. E aponta o palco, e diviniza-se.

Logo o que viemos assistir ali começaria. Eu não queria. Fiquei pedindo atrasos, acidentes, falta de luz, para que somente a atriz que eu acabei de conhecer iluminasse tudo. Sou homem de sorte, já falei. Conhecer uma atriz não é destino fácil, não é acontecimento banal como pombos na praça, carros parados sobre pontes, terremotos, quedas de ultraleves, filmes ruins, filosofias da incompreensão. Conhecer uma atriz é raro e é preciso. Ainda mais assim, uma atriz transfigurada em plateia, uma atriz quase minha igual no mundo. Eu que sempre as vi à distância, sendo quem não são, sendo rainhas, cabras, putas, mortes e senhoras respeitáveis, agora estava ali, sentado ao lado de uma atriz que naquele momento era apenas um nome e sobrenome. Apenas uma mulher querendo ver uma peça. Mas quando pronunciou-se atriz, tive que destituir-lhe o cargo de anônima, tive que lançá-la nos holofotes. É inevitável quando se conhece uma atriz.

A peça que viemos ver começou. Os escuros acobertaram olhos, cabelos, o colo denso. Pouco vi dos outros atores e atrizes sobre o palco. Pareciam bodes, animais de luto. Ao meu lado, a atriz parecia se ver em seus colegas de trabalho, enquanto eu me via vendo a atriz. Talvez fosse ela um jardim. Talvez minhas eternas ervas daninhas tenham tido momentos difíceis no dia em que conheci uma atriz.


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