Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 110 - 2ª quinzena de junho
(próxima coluna: 10/07)

A ERA DA DESCONFIANÇA

Derrida escreveu: "Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes”. "Cuidado com o que abre para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também com o que, fechando-se em si mesmo, não cria senão um fantasma de cercado, e se coloca à mercê de qualquer interesse ou se torna perfeitamente inútil. Cuidado com as finalidades, mas o que seria uma universidade sem finalidade?", diz ele em “O olho da universidade”.

O escritor, como membro da sociedade, pertence a uma determinada classe social, e desse modo a literatura que ele produz é necessariamente expressão da sociedade em que vive assim como de sua classe social. O artista exprime a significação, mesmo que não queira, quando dá forma à arte “abstrata”, pois a História e o processo da História é algo do qual não pode fugir. A arte não só reproduz a significação, como dá forma a um tipo de significação. A arte cria a significação que exprime. O artista, e de um modo geral todo agente social, cria a significação, modifica-a, atua na sua modificação.

Mas a literatura não substitui a sociologia e a política como maneiras de explicar e de “fazer” a sociedade. A arte não obedece ao princípio da imitação da significação estabelecida, mas ao princípio da negação desta significação, o que não é meramente negação, mas problematização.

Como parte da sociedade, a literatura é imanente à significação (está nela). Mas como ficção, como imaginação, transpõe a imanência, criando outra significação possível para se opor à significação concreta. Essa oposição é negação da significação, para opor à significação outra possível, por exemplo mais humana, menos violenta, não dividida em classes. Assim é possível ao escritor pacifista escrever um romance sobre a guerra.

A literatura como ficção é autônoma da significação. Mas é dessa forma que ela denuncia a significação (de “fora”, através da forma, tanto quanto através do conteúdo, pois é a forma que expressa o conteúdo). A literatura "desrealiza" a significação, para quebrar o monopólio da significação em definir e questionar o que é real, porque a significação concreta está mascarada, mistificada, alienada.

O homem da sociedade pós-industrial não é livre e vive uma significação distorcida e alienada. Só agora os grandes meios de comunicação deixaram de “dominar” a significação com seus interesses (a reeleição de Lula prova que este fenômeno já chegou ao Brasil).

Na significação pós-moderna essa divergência entre essência e aparência diminuiu na mente dos consumidores de cultura. Na era industrial, o que a sociedade considerava como real era aquela aparência de significação, que era falsa, mas tida como verdadeira.

Na literatura da época industrial, o que era real era definido a partir de uma "desrealização" que a obra-de-arte fazia. O monopólio da significação era que­brado para se definir o que é real, e para ver-se a separação entre aparência e essência, mostrando como no mundo real os indivíduos se acham alienados.

Hoje a situação começa a aparecer de outro modo. O escritor começa a dizer para o leitor: “olhe, atenção, estou fazendo literatura, ficção, mentira.” Desta maneira, a arte parte de uma alienação do mundo da significação para o mundo da obra, ou seja, ela denuncia a significação de fora, através de uma significação fingida. O artista reproduz a imagem do que vai denunciar, e convida os receptores para que saiam do mundo da significação e assim possam ver sua ilusão da mesma significação em que se inseriam, e como tomam a aparência do real pelo real mesmo.

Sair da significação significa, então, ter e ver a significação como objeto, tomá-la objeto de conhecimento.

Realidade é tudo que for apreendido pelos sentidos. E real é tudo que só pode ser concebido pelo intelecto. A sociedade é vista num primeiro momento pelos nossos sentidos, principalmente a aparência de significação em que se acredita estar sua verdade. Entretanto, a sociedade não é só definida por uma significação perceptível, como o que a estrutura é a ideologia dominante agora fragilizada, problematizada. O homem pós-moderno já não é um crente ou, de tanto mentir, os criadores da significação (a grande imprensa, alguns partidos políticos) estão perdendo terreno, idoneidade. Assim, a sociedade, além de ser a significação, está em modificação pela anticrítica dos seus constituintes.

Antes, quando descobríamos o real da significação, podíamos dizer que a “desmascarávamos”. Hoje começamos a desconfiar, vivemos na era da desconfiança.

A sociedade, na obra, é quebrada na sua integridade aparente e trans­formada no campo de suas possibilidades disponíveis, como possibilidades de libertação não utópicas, mas possíveis. A arte destruiu o universo normal mistificado, sua verdadeira natureza constitui uma revolução da significação, para além do mundo das necessidades destrutivas que a caracterizam a significação. Ela tem seu próprio mundo e ilumina o mundo da significação a partir de uma desrealização, pretendendo ser mais real do que a própria significação. Para afirmar a significação, ela primeiramente nega o que seja real. A criação cria a própria significação que vai criticar e permanece válida mesmo quando a significação já se foi no passado.

Derrida argumenta que a possibilidade de significação depende em geral de um irreduzível efeito de "disseminação", pois o vagar da significação é a condição insuperável da produção do significado: "Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes (diz ele). "Cuidado com o que abre para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também com o que, fechando-se em si mesmo, não cria senão um fantasma de cercado, e se coloca à mercê de qualquer interesse ou se torna perfeitamente inútil. Cuidado com as finalidades, mas o que seria uma universidade sem finalidade?", diz ele em “O olho da universidade”.

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