COLUNA DE VÂNIA MOREIRA DINIZ

Nº 101 - 6/4/2011
(próxima: 6/5/2011)

          

Nada menos que egoísta

        Eram quatro crianças. Olhava-as procurando entender porque estavam ali, naquele casebre, sem segurança e sem comida enquanto nós podíamos usufruir um conforto razoável. Procurava entender na minha ignorância porque seus olhos deviam estar tão tristes e opacos quando mesmo difícil existia um mundo que elas deveriam admirar. Não questionava Deus. Apenas não entendia seus desígnios.
         Aproximei-me de uma delas. O menino era louro e seus cabelos foscos de poeira tinham uma tonalidade que muitas pessoas procuram. A suave tonalidade clara em certos momentos e à luz do sol que entrava tênuemente, pois eu deixara a porta aberta ao entrar, tinha reflexos cor de mel. Os olhos imensos pareciam dizer que tinham medo. Logo compreendi que expressavam o quanto sentiam fome.
         Agachei-me para conversar com os quatro garotos, que pareciam desconfiados, e, no entanto me fitavam com um sentimento que eu não sabia definir, embora me confortasse.
Passei a mão pela cabeça daquele que estava mais próximo, perguntando:
         Está sentindo alguma coisa, querido?
         — Ele apenas balançou gravemente a cabeça olhando para os alimentos e doces colocados numa plataforma que estava ali, à guisa de poltrona. E eu compreendi seu intercâmbio tímido e esperançoso. Sorri para todos esperando receber na retribuição do sorriso uma forma de me sentir menos culpada.
         A mãe se aproximou sem mais tanta cautela, olhando-me ternamente enquanto me dizia:
         —Eles estão com fome!Só isso!
         Observando-a percebi que aquela mulher, mãe das crianças, estava envelhecida prematuramente e que a vida não a privara de sofrimentos estampados no rosto que deveria ter sido um dia, se talvez tivesse sido bem tratado, o de uma mulher bonita. Os traços eram delicados, mas o sol tostara a pele de uma maneira  selvagem, deixando marcas de maltrato e engrossando a pele, prova evidente da aridez de sua vida.
        Segurando minhas mãos, agradecia aquele momento e minha vontade era infundir-lhe calor nas mãos ásperas que eu sentia entre as minhas. E mais uma vez não entendi a diferença que tem que haver, entre seres humanos criados pelo mesmo Onipotente Deus.
         Pedi a ela que tirasse os mantimentos necessários e fizesse um almoço para todos enquanto distribuí os chocolates que, tinha certeza, logo lhes daria certo vigor, enquanto esperavam. Embora desconfiados, os quatro meninos sorriam, mostrando os dentes que já careciam de tratamento e então me sentei e pus no meu colo a menina que fora motivo de minha apreciação maior.
         Ela acedeu mansamente e perguntou
         — Por quê trouxe comida?
         — Para que vocês se alimentem
         — Por quê? Você já veio aqui?
        Olhava para a pequenina de cabelos castanhos e olhar belicoso, que dava um traço de charme intenso à sua fisionomia. Era um rosto agreste, bem brasileiro e encantador e desejei que ela jamais voltasse a passar os momentos duros que já deveria ter enfrentado. Mas Luana me olhava sem tirar os olhos dos meus. E então num movimento recíproco nos abraçamos, sem que eu pudesse entender a sincronia intensa que se formou.
       As outras crianças me cercaram e fiquei pensando como poderíamos ajudar tanta gente, nessa circunstância, num país todo que passava fome. Num lugar cujas crianças cresciam ansiosas para que abríssemos os olhos, notando que ali estaria o país de amanhã que poderia ser valoroso se seus membros em crescimento recebessem educação e carinho e seria fatal, se a nação continuasse maltratando e indiferentes à fome e miséria de milhares de crianças e famílias, definhando em meio a uma terra produtiva e fecunda.
        Enquanto comiam vorazmente pensei em quanto alimento colocamos fora, inconscientemente, e na verdade julguei-me, nada menos que egoísta. Foi isso que pensei naquele momento, as lágrimas lentamente descendo, enquanto observava a cena de pessoas que ali estavam tão perto de mim e com as quais fora tão indiferente.


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