Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 113 - 1ª quinzena de agosto
(próxima coluna: 25/08)

O CADÁVER PRODUTIVO

A partir do séc. XX a reificação do indivíduo o transforma em objeto social, na massa, imanente ao todo. As sociedades modernas (não as pós-modernas) são sociedades de massa. Estamos nelas como a água dentro da água, para usar a metáfora de Bataille. O indivíduo do capitalismo de massa é imanente ao todo. Se sair da imanência, morre.

Na massa, a individuação não é nem coisa nem indivíduo. Fica no meio do caminho que vai daquela para este. Pois as coisas estão no nível da terra, do planetário, sem um sentido dinâmico que lhes dê vida. As coisas mesmas, em si, são o não-sentido, se nós a imaginamos sem uma consciência que as pense, que as transforme em objetos do pensamento. A coisa, como tal, não é ainda objeto (do sujeito), não é ainda objeto (do conhecimento), pois o objeto passa a existir de um sujeito que o pensa. O vazio de sentido das coisas ganha o terror a ver o horizonte morto, sem alma, morte.

Na medida em que nós possamos ver no indivíduo também uma coisa, seu absurdo não será menor do que o das pedras. Mas ele não é sempre redutível à realidade inferior que atribuímos às coisas. Pois o problema que se avista na reificação é o da incomunicabilidade, do fechamento, do hermético (que apareceu na estética de vanguarda) do absurdo do viver, do mundo despovoado de sentido, ou sentido, sem afeto, não participar da história, não compreender o todo, ignorar causas e decisões, a natureza dos acontecimentos. Sim, tudo Kafka. O indivíduo moderno se encontra no limite. No marco. O afastamento da natureza, onde era exigido o exercício dos sentidos, o artificialismo da vida, a armação tecnológica, uma espécie de inteligência anestesiada. Nosso mundo é o cibernético, virtual, eletrônico, dos microcomputadores, porta-vozes de uma felicidade hospitalar, onde tudo funciona sem nervo. O indivíduo transformado em objeto da ciência, imanente ao todo.

O mundo da modernidade é o da imanência e do imediatismo. Na “pós” algo se modifica. O mundo do espetáculo não deixaria medida em que se pode transcendê-lo. A transcendência pertence à categoria humana arcaica, à consciência das coisas. A vacuidade do olhar que vê o vídeo do computador revela a imanência existencial não mais exercendo o seu poder de transcendência.

Objeto do emprego que a tecnologia moderna faz das coisas tornadas úteis, práticas, aperfeiçoadas, interrompeu a continuidade harmoniosa e natural em que se encontravam os seres humanos. O olhar que vê o objeto já não é o que vê a coisa dada na natureza, assim como o que vê o vídeo não é igual ao olhar que vê a flor. A flor é a redenção daquele olhar capaz de transcendência. O vídeo fez o olhar desaparecer. O olho não mais repousa na flor. Não a ama. A flor vem pronta, com nome e classificação, não é a da margem da estrada. O olho já não pára na margem da estrada, para a contemplação da flor. A contemplação pertence a um passado, remoto, histórico, arcaico. A contemplação não é possível no deserto, que tudo traduz, matematizado. A técnica revela o esquecimento do olhar.

A técnica nos prepara para aceitar a imanência, submete o sujeito ao jugo do objeto. Ensina-o a ser “feliz”. No estado científico o sujeito se submete sem protesto ao mundo dos objetos, não experimenta um horror à reificação. Ao contrário, tememos ser diferentes.

As religiões ensinam que o indivíduo é espírito. Enquanto espírito, o indivíduo é divino ou sagrado, mas seu aspecto sagrado também é ambíguo, dicotômico, porque realidade corporal. O que coloca o corpo na posição de coisa para o mundo, nas imanências objetivas. Sagrado enquanto espírito, profano corpo, o indivíduo perdeu a luta contra a assimilação na imanência do mundo dos objetos. No mundo objetivo. Como animal perde sua dignidade de semelhante ao deus.

As religiões trataram de esmagar o animal dentro de nós. E nos deixaram em pedaços. Tinham a ambição de transcender a animalidade, de ser puro espírito. Pois o animal é o pecado. E o indivíduo, consciente de sua animalidade, se vê como anomalia (houve até quem extirpasse seu próprio pênis). O pecado de ser. Recusando o animal, não nos transformamos em puro espírito, mas em objeto da esquizofrenia social, fragmentação da personalidade, perda de contato com a realidade. Pois o animal é a coisa mesma que o indivíduo recusara em si. Mas só como animal ele pode revolucionar. Crescer. Toda revolução da subjetividade é instintual. O objeto é a coisa feita útil, eficaz. O indivíduo, um produto eficaz. Como objeto, sem instinto, o indivíduo é produto das sociedades eficazes. Programadas. Produzidas. Continua sem ser puro espírito. As religiões faliram. Seus projetos estão incompletos.

Para que um animal seja uma coisa, tem de ser domesticado. Ou morto. Transformar-se em alimento. Domesticado, o animal é coisa civilizada. Só ambiguamente o animal é coisa, já que fica no meio estágio entre indivíduo e coisa.

O indivíduo não come o animal, come o alimento. O indivíduo não come nada que não seja reificado. Não comemos “animais”, mas alimentos. Já o animal come outro, sem reificá-lo previamente, pois a coisa come a coisa, no mesmo nível. Quando um guerreiro mata outro, lança um olhar triunfal. Quando um animal come outro, acaba de jantar. A preparação da carne reifica o animal, torna-o alimento. Comer o animal cru é selvageria. E comer outro indivíduo, impensável. Os estudos de anatomia só foram aceitos muito recentemente. Os “materialistas” são de certo modo religiosos em relação ao corpo do indivíduo. Os tabus, como o da virgindade, refletem este aspecto mítico, do corpo do indivíduo. A nudez ainda agora é considerada algo espantoso. O corpo é considerado animalesco. Diz Bataille: “A atitude em relação ao corpo tem uma complexidade aterradora. É a miséria do indivíduo, enquanto espírito, ter um corpo de animal e por isso ser uma coisa, mas é a glória do corpo humano ser o substrato de um espírito”.

Neste sentido, o cadáver é a afirmação do espírito, pois a essência do espírito se revela com a ausência de vida, ao mesmo tempo em que o cadáver revela o estado de coisa, o corpo do animal morto. O ideal das religiões é que o indivíduo seja um cadáver robotizado. Mas produtivo.

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