JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 20/7
(Próxima coluna 27/7)

Cabra-cega nos espelhos

Ettore não era guerreiro como seu ilustre xará, Heitor, o comandante das tropas troianas derrotadas pelos gregos. E Schmitz não era ferreiro, significado do sobrenome alemão que o autor de A consciência de Zeno tinha quando lançou este romance importantíssimo na história da literatura universal, o qual não perpetuou. Pois, por decisão de Lívia, a mulher, seus pósteros e mesmo parentes colaterais, os descendentes dos irmãos, terminaram mesmo foi usando o sobrenome do pseudônimo que ele adotou para assinar suas obras literárias, Italo Svevo. Italo era, sim, italiano, apesar de viver na cidade de Trieste, à época de sua vida, na virada do século XIX para o XX, pertencente ao império austro-húngaro, aquele de Francisco José e da belíssima imperatriz Sissi. E esse sobrenome expunha de qualquer maneira seus laços sangüíneos com a cultura germânica, uma vez que é um gentílico em italiano de uma região alemã. Apesar de se considerar um autêntico latino, Italo queria registrar no pseudônimo Svevo sua admiração pela literatura e pela música produzidas na pátria de Goethe e Mann.

Ettore Schmitz, aliás Italo Svevo, de ascendência judaica, pertencente a família originária da Renânia, grande e abastada (o pai era um rico comerciante de vidros), tinha um aspecto bem burguês, com um sorriso bonachão em que o bigode espesso não conseguia esconder o ar zombeteiro desenhado pelos lábios finos em curva sutil e “giocôndica”. E ele, de fato, ganhou a vida primeiro como bancário e depois como fabricante e vendedor de tintas submarinas, com as quais se pintam os cascos dos navios abaixo da linha d'água. Nunca dependeu de direitos autorais para viver. Nem podia. No último decênio do século XIX, quando trabalhava num banco, tentou se lançar como escritor em Trieste com dois livros, Uma vida e Senilidade. Em família ele se demonstrou tão desgostoso com o desprezo voltado pelos críticos a sua obra que os parentes se surpreenderam com a edição de A consciência de Zeno, em 1923.

À bênção, tio James

Em 1980, portanto 57 anos depois, a Editora Nova Fronteira lançou a primeira tradução brasileira, magnificamente elaborada pelo poeta Ivo Barroso, dando oportunidade ao público brasileiro de conhecer este romance, o maior da literatura universal abordando um tema fundamental do século XX, a psicanálise. Escalado pelo ficcionista e jornalista cearense Mário Pontes, à época editor do suplemento semanal Livro — Guia semanal de idéias e publicações do Jornal do Brasil, para escrever a respeito dessa edição, localizei em São Paulo um italiano com o sobrenome do pseudônimo do autor. Filho de Ottavio, irmão caçula de Ettore/Italo, ex-gerente de vendas de motores da indústria de eletrodomésticos Arno, empresa familiar brasileira oriunda da Itália, Mario era um fiel guardião da memória do tio escritor, tendo em seu poder testemunhos impressos das dificuldades que este enfrentou para se afirmar no competitivo planeta das vaidades da literatura italiana.

“Quando A consciência de Zeno foi lançado na Itália, ninguém se incomodou. Mas meu tio mandou o livro para James Joyce, seu amigo e ex-professor de inglês, e este, entusiasmado, o remeteu para o crítico francês Benjamin Cremieux, com uma carta particularmente significativa. Cremieux o entregou a Valéry Larbaud, que fez a tradução francesa. * A partir dessa primeira tradução foi que a crítica francesa se interessou pelo livro. E só depois de ser bem recebido na França, o romance obteve repercussão na Itália”, contou Mario, violoncelista amador que cursou o Conservatório de Viena e foi um freqüente espectador das sessões musicais realizadas na casa ampla de Ettore/Italo, que, apesar de amador, era um virtuose ao violino. Coincidência interessante é que um dos mais importantes romances brasileiros contemporâneos, Zero, embora nada tenha a ver com Zeno, também foi publicado primeiramente em tradução e só depois editado aqui no Brasil. E, para a coincidência ser ainda mais espantosa, a obra de Ignácio de Loyola Brandão foi lida em italiano, língua em que Svevo escrevia, antes de ser impressa em português.

O crítico Alfredo Bosi dá início a seu ensaio Uma cultura doente? , publicado em Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia e reproduzido à guisa de posfácio nas edições mais recentes deste romance, com uma citação de Svevo sobre a amizade íntima que mantinha com o genial romancista irlandês, que foi também seu professor de inglês. “James Joyce chegou a Trieste em setembro de 1903. Foi por acaso. Procurava um emprego e o encontrou na Escola Berlitz de nossa cidade. Emprego medíocre. Mas chegava a Trieste trazendo no bolso, além do pouco dinheiro para a longa viagem, dois manuscritos: grande parte das líricas que seriam publicadas sob o título de Música de câmara e algumas das novelas dos Dublinenses. Todo o restante da obra, até o Ulisses , nasceu em Trieste. Aliás, também parte do Ulisses nasceu à sombra de San Giusto, porque Joyce morou entre nós durante alguns meses depois da guerra. Em 1921 fui eu o encarregado de levar-lhe, de Trieste a Paris, as anotações para o último episódio. Eram alguns quilos de papel solto, que nem sequer ousei tocar, para não lhe alterar a ordem, que me pareceu instável”, escreveu Svevo em Saggi e pagine sparse, citado pelo mestre Bosi, que no mesmo texto nos introduz o outro lado da amizade reproduzindo um trecho de carta escrita por Joyce, de Paris, em 30 de janeiro de 1924, a Svevo a respeito deste romance. “Estou lendo com muito prazer. Por que se desespera? Deve saber que é sem comparação o seu melhor livro... Por enquanto duas coisas me interessam: o tema; nunca teria pensado que o fumo pudesse dominar uma pessoa daquele modo. Segundo: o tratamento do tempo no romance.”

Antitabagista avant la lettre

Nos quase cem anos de que distamos do lançamento deste livro, a indiferença com que foi recebido foi vastamente compensada pela imensa fortuna crítica que passou a acolhê-lo depois do pontapé inicial dado pelo mestre dublinense. Suas conexões com Ulisses são tão repetidas e óbvias que há até quem considere Svevo o inspirador de Leopold Bloom, a mítica criação de Joyce, que por sua vez teria na outra personagem, Stephen Dedalus, um alter ego. Seria Zeno Cosini também um alter ego de Svevo?

Essa pergunta me remete a questões ainda não aprofundadas pela crítica. Joyce foi o primeiro a registrar o espanto do leitor diante dos malefícios causados pelo tabagismo, o que torna seu amigo em Trieste um pioneiro da luta contra o tabaco, que se tornou um cavalo-de-batalha da higiene e da saúde politicamente correta neste século XXI. Esse pioneirismo tem sido associado a outro, qual seja a adoção da psicanálise do austríaco (e como Svevo de ascendência judaica) Sigmund Freud como tema de exposição e crítica ao mesmo tempo. Mas ainda não foi devidamente estudado o fato de o método utilizado pelo romancista — da terapia de um tratamento psicanalítico por meio de uma narrativa literária — ter sido adotado na psicanálise moderna por um de seus expoentes, o americano Rollo May, ilustre representante da moderna psicoterapia existencial e autor do clássico A coragem de criar.

A memória como ficção

Outra faceta ainda não devidamente explorada da obra de Svevo é o fato de, apesar de suas exaustivamente estudadas conexões com a de seu professor de inglês em Trieste, ela se lhe contrapor, abrindo as portas da percepção para um tipo de narração, se não antijoyciana, no mínimo não-joyciana. A consciência de Zeno brinca com as armadilhas da memória, mostrando que, em vez de relatar, esta, na verdade, reinventa as lembranças. Mais que registro documental, ela é um gênero de ficção. Na edição do jornal que reproduziu minha entrevista com Mario Svevo, o escritor Salim Miguel escreveu uma resenha, “Zeno versus Freud”, na qual resume magnificamente isso: “Zeno oscila entre a verdade e a mentira, numa ficção inventada por ele mesmo sobre sua própria realidade, procurando iludir seu psicanalista — ou se iludir. E a dúvida se aprofunda: será que fala a verdade, quando não mente? Será que falta à verdade, quando mente? Mentira e verdade se interpenetram naquele mundo. Se nos lembrarmos de que Zeno por sua vez é ficção (o quanto de verdade e mentira consciente ou inconsciente o autor nele colocou?), estamos diante de uma estrutura romanesca de jogo de espelhos.”

Jogo de espelhos lembra quem? Jorge Luis Borges, é claro. A idéia é que essa brincadeira de gato e rato entre autor e leitor, que o portenho transformou na alternativa mais interessante e criativa à pesquisa lingüística de James Joyce para se tornar o veio dominante da prosa do futuro, já era contida neste romance instaurador. Se o gênio de Dublin usava sua sesquipedal erudição lingüística para propor ao leitor uma espécie de jogo de armar, fazendo do texto literário o que as crianças fazem com peças que se encaixam para formar figuras à escolha da imaginação delas, o de Buenos Aires e, antes dele, o de Trieste propõem uma armadilha sutil em que a inteligência do leitor não é exigida para descobrir as raízes etimológicas do texto, mas a própria natureza deste. Onde está a mentira? Onde está a verdade? É uma seqüência de cenas de luz e sombra brincando de cabra-cega literária, a que o leitor é convidado a passear nos limites incertos da personalidade múltipla de Ettore-Italo-Zeno. Pode-se até dizer que Joyce foi o principal responsável pela aceitação daquele que apresentaria a saída para o impasse trazido à baila por Ulisses , mas principalmente por Finnegans Wake. O ar irônico do falso bonachão registrado na mais reproduzida foto do romancista italiano provoca até um comichão neste escriba desautorizado a voar tão alto, levando-o a crer que, da mesma forma como “realiza um romance de linha psicanalítica”, mas “faz, igualmente, a própria crítica da psicanálise, questionando sua validade científica como um todo” (apud Salim Miguel, na resenha citada), este também escancara as portas que Joyce lhe abriu para mostrar que há outras vias pelas quais a literatura de boa cepa pode trafegar.

Não há, é claro, parentesco evidente entre este romance caudaloso e as ficções curtas e os poemas de Borges. Mas é fascinante imaginar que ambos operam com maestria a narrativa numa língua canônica, que Joyce consideraria caduca, para conduzir o leitor pelo território indefinido entre a mentira que pode ser uma verdade incômoda e a verdade que talvez seja uma mentira conveniente. Só isso já justifica a fortuna crítica que esta obra-prima acumulou e a fama que ela amealhou, com justiça, de ter sido a fonte em que muitos dos melhores encontraram seus instrumentos literários mais argutos para expor as próprias dúvidas e escarnecer de certezas sob encomenda.

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