Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 114 - 2ª quinzena de agosto
(próxima coluna: 10/09)

A DISSOLUÇÃO REBELDE

Nós pesquisamos “Grande Sertão: veredas” e à medida que prosseguíamos na pesquisa acerca da subjetividade íamos percebendo que esta se reconstruía no sentido primeiro de uma resistência à objetividade da razão, depois como reconstituição da subjetividade perdida (do tipo reivindicatório dos direitos da paixão), para sofrer a seguir um reencontro com o sujeito esquecido pela sociedade industrial. No fim, entretanto, percebemos que desse reencontro se passava para uma reconstrução da subjetividade rebelde, considerando-se que o pensamento depois do fim da União Soviética supera a dualidade de sujeito e objeto em fragmentações.

Essa reconstrução superativa desestabiliza a própria noção de subjetividade, e dá à condição subjetiva uma “dialética do fantástico”, isto é, aspira a sair das grades objetivas, porque constrói um mundo autônomo, mas verossímil, para tematizar a realidade (a sociedade), e recusa-se a ficar no “alienado” mundo subjetivo, instaurando uma sobredeterminação que não é mais nem sujeito nem objeto, mas crítica da possibilidade de abrir o próprio espaço de emancipação. A norma objetiva não foi recusada ali, do que resultaria uma visão aleatória de um mundo inexistente. E as emoções do sujeito não foram controladas pela racionalização visando a um fim. Nenhuma dessas duas margens do rio foi deixada a descoberto. A terceira margem, porém, passa a constituir-se como forma, como possibilidade de emancipação.

A metáfora da “terceira margem do rio” nos possibilitou mais uma vez compreender “literariamente” o que se passava na sociedade, especificamente a brasileira.

Como compreender esse homem e esse mundo sertanejo sob a ótica do mundo internacional atual? O mundo do capitalismo monopolista, estatal, científico, intervencionista, o complexo industrial-militar de que não participa o sertão? No fundamento, vê-se que, interpretando o papel do sertão no mundo (pós)moderno, estaríamos iluminando certas zonas obscuras da reconstrução da subjetividade. Pois literatura é problematização da ideologia tecnocientífica dominante.

Poderíamos dizer que vimos em Grande Sertão: veredas a reconstrução da subjetividade em estado de condição primitiva e a objetividade instrumentalista do capitalismo. Este o impacto de fatos históricos da atualidade, ainda que a diversidade de Diadorim não seria um mero papel social.

Vimos que, na sociedade (pós)moderna, há furos, enclausuramentos, veredas que só se liberam no reconhecimento do outro. O sertão só é grande se absorve a vereda. À opulência desenvolvimentista da objetividade se opunham às diferenças, as margens, os pedaços, os detritos, os banidos, o que não é o centro. A obra dá um salto qualitativo nesta contradição.

Cada vez mais fomos percebendo que as formas da objetividade estavam a serviço da violência, da dominação. Só poderiam considerar a reconstrução como instrumento de dissolução rebelde, abrindo perspectivas livres e recompostas, naquele lugar de superação que é o discurso do sertão, espaço utópico: As formas de objetividade, o reconhecimento crítico do impasse, a recuperação da subjetividade. Essa recuperação confluente, não excluindo a objetividade, não fazendo com a objetividade o que esta fez com o sujeito, embora parta de um primeiro movimento de negação.

Como questões secundárias a verificação de qual o espaço e o papel do pensamento da liberdade no mundo da pós-moderna sociedade tecnológica de organização visando a um fim de alta densidade de informação e globalização. Para isto, estabelecemos uma teoria da dominação e da violência, vendo a relação dialética do sujeito com a dominação social para chegar à dialética do sertão (à lógica do sertão) que em Grande Sertão: veredas começa a delinear-se, ou seja, no Brasil e nos grupos minoritários, resposta ao totalitarismo das certezas tecnocientíficas, em que o indivíduo desaparece em favor da funcionalidade do todo. As relações da violência e da dominação da sociedade moderna são formas "alternativas" da atualidade.

Que resposta o pensamento contemporâneo pôde dar à sociedade fundada na tecnologia-científica do mundo moderno? Tratar-se-ia de um modo brasileiro de responder? Uma visão da lógica do sertão, os aspectos problemáticos da modernidade repercutindo com maior rigor, o necessário distanciamento. Acreditamos que as normas ideológicas da sociedade de massa traçam os rumos do mundo como um todo e, ainda que o capitalismo brasileiro tenha suas características próprias, seu modelo de Estado Científico é semelhante ao dos outros estados, embora aqui adquira especificidades locais. A resposta "literária" ao problema do humanismo na modernidade, através de uma pretensa elaboração.

Há uma espécie de realismo fantástico de Guimarães Rosa, o texto literário como força política em favor da sobrevivência de um novo humanismo que trata o homem como um principal, não como instrumento ou decorrência de uma tecnologia totalitária, detentora do saber e do poder. Esse humanismo responde à razão com a emoção, com a desrazão, responde ao estado de coisas dominante. É a resposta latino-americana a uma espécie de caos, que provoca, pela sobrevivência da própria cultura, radicalmente ameaçada, assim como pela sobrevivência da vida humana sobre a Terra. São forças que se encontram reunidas para negar a realidade. Essa negação radical se encontra com aquela espécie de caminho de salvação da espécie humana sobre a Terra, caminho esse que questiona a própria natureza do rumo do caminhar. É um caminho mais para dentro do que para a linha do horizonte. Ele é mais em profundidade do que em extensão. É um caminho essencialmente emotivo. Não há preocupações teóricas, mas políticas. Se alguma luta ainda houver, será ditada pelas leis do coração, pela natureza radicalmente não-científica.

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