JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

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O resgate da moral

Por incrível que pareça, no meio do tiroteio do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo, entre um flash e outro dos julgamentos dos assassinos dos casais Richthofen e Liana Friedenbach e Felippe Café, no auge do noticiário sobre mais um escândalo cabeludo na política (a Máfia dos Sanguessugas) e em plena vigência da baixaria generalizada nas campanhas políticas, uma notícia aparentemente amena pode ainda ser mais inquietante que tudo. Em entrevista às páginas amarelas da Revista Veja, o escritor Sílvio de Abreu, autor da telenovela Belíssima, recentíssimo sucesso do horário nobre da televisão, veio nos contar que as donas de casa da classe média, que participam dos grupos de pesquisa qualitativa que acompanham os programas de maior audiência na televisão, torceram pelos vilões e não pelos mocinhos de seu folhetim eletrônico. Sim, é verdade que os mocinhos são personagens sem graça, mas será que o são só porque cometem a “estupidez” de fazer o bem? Os maus, não, estes têm charme, têm verve. Para quem imaginasse que esta não é uma novidade, o autor de telenovelas explicou que, há cinco anos, quando assinou outra telenovela na mesma campeã de audiência, a Rede Globo de Televisão, As Filhas da Mãe, o comportamento desses grupos de avaliação do trabalho ficcional do veículo por excelência de diversão popular, era exatamente o oposto. Ou seja, nos últimos cinco anos em alguma cloaca infecta a sociedade brasileira despejou alguns de seus valores morais mais caros para abraçar uma amoral ética de resultados, que se resume na forma como essas donas de casa encaram, com bonomia, a trajetória de personagens que fazem o mal só para se dar bem. Essa atitude explica, em parte, o prestígio que o presidente da República tem demonstrado na corrida pelos votos de sua reeleição, apesar de seu partido, o PT, e seu governo terem tido sua imagem estilhaçada por um escândalo de corrupção de graves proporções, talvez inédita na história da República. A verdade é que essa perda de valores estabeleceu agora duas regras básicas. Uma é a do “sou, mas quem não é?” da personagem cínica do antigo programa humorístico na TV. A outra é a brincadeira que o humorista Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto) fazia em suas colunas nos jornais nos anos 50 e 60 do século passado, no Rio de Janeiro: “restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos”. Não se trata mais de discutir quem nasceu primeiro, se foi o ovo e a galinha. Ou seja: a questão agora não é responder à dúvida filosófica que se põe diante da questão: serão os políticos safados representantes de uma sociedade amoral ou o cidadão se tornou amoral pelo exemplo dado pela sórdida elite dirigente que controla os cordéis do jogo político. Seja qual for a resposta a essa dúvida, que, aliás, deveria estar, mas não está, sendo discutida nos palanques e na academia, o buraco é bem mais embaixo. Vivemos imersos numa cultura de corrupção da qual praticamente ninguém está isento. Quem nunca corrompeu um guarda de trânsito? Quem nunca pagou uma propina a um funcionário público para furar a fila em alguma demanda? Quem nunca deu um cala-boca a um policial para fugir a um flagrante? Para sair dessa cloaca é preciso usar como lema a humilde constatação feita por Jesus Cristo quando deteve a malta que, em nome da lei mosaica, se preparava para apedrejar uma mulher adúltera: “o que de vós está sem pecado que atire a primeira pedra” (João, 8, 7). Urge fazer já (e não dá para esperar mais) o resgate dos valores morais para a reconstituição do tecido social que se esgarça dia a dia sem abrir mão dos conceitos fundamentais da liberdade política e econômica. Nada de recorrer a estratégias espúrias como o voto nulo ou o niilismo alienado. Nem ficar convocando os velhos fantasmas autoritários e aventureiros do trágico passado recente. Parte da perda de nossos velhos valores morais se explica exatamente pela covarde abstenção do cidadão de seus deveres elementares de votar, ser votado e influir na gestão dos negócios públicos. Cada um tem de assumir a sua parte na faxina necessária: debater, pôr a cara a tapa, não transigir – esta é a palavra de ordem. Quem fugir, quem se acovardar será cúmplice do suicídio moral a que a sociedade brasileira se tem conformado de forma estúpida, embora consciente.

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