"POETICIDADES E OUTRAS FALAS"
RUBENS DA CUNHA

Reside em Joinville, SC. Autor de "Campo Avesso" e "Visitações do Humano". Acadêmico de Letras. Escreve semanalmente no Jornal A Notícia e coordena o Grupo de Poetas Zaragata. Na Web tem o e-book: "A busca entre o vazio", disponível para download,
na URL: <http://www.arcosonline.com/index.php?option=content&task=view&id=146&Itemid=>.
Blog "Casa de Paragens": <www.casadeparagens.blogspot.com>.

Coluna de 9/11/2011
(próxima coluna: 26/11/2011)

O CALOR

Ele é do Sul. O pedaço do País que mais faz frio. Ele não gosta, não do Sul, mas do frio. Acha que há nisso um certo azar. Sua alma Poliana sempre lhe diz o contrário, que ali mesmo, perto dele, há lugares bem mais frios. Então o azar não é tão azar assim, afinal, ele nasceu no Litoral, num bom lugar, sempre pode se agasalhar, comer coisas quentes e calóricas, além disso, haverá o verão logo. Tendo saudade do verão, ele aprenderia a apreciar melhor, a valorizar mais. Essa é a sua alma Poliana falando. É uma boa alma, claro, mas meio falante demais, sempre vendo as benesses de tudo. Ele não discutia. Talvez a alma estivesse certa e odiar o frio não fosse coisa assim tão boa, vá saber? Afinal, ela é uma alma, ele apenas um poeta menor.

Em todo inverno, ele, que nunca tinha ido para um lugar realmente quente, ficava na frente da TV esperando a moça do tempo falar. Quando as temperaturas se espalhavam sobre o mapa do País, ele sonhava e invejava aquela gente lá de cima, que vivia sempre no calor. Mínima de 25 e máxima de 40º C, a moça falava docemente. E quando apontava para onde ele mora: mínima de 5 e máxima de 18ºC. Ele só pensava na mínima, a alma Poliana lhe dizia, 18 graus, é quentinho, amanhã vai ser um bom dia e lembre-se, logo vem o verão.

Viviam assim: ele sonhando um tempo em que viveria junto com os lá de cima um verão contínuo, sem a interrupção das outras estações, sem que seu parco verão fosse ameaçado por frentes frias. A alma aconselhando calma, mandando ver as vantagens, as variações, se ele estivesse num lugar que só faz calor sentiria muita falta das mudanças climáticas. Ele sempre calava, não podia se livrar da alma, rejeitá-la ou enviá-la para um recôndito qualquer do Polo Sul ou da Sibéria.

Mas teve um dia, um pouco antes do verão chegar, que ele pode ir passar uma semana com o pessoal mais de cima. Nem consegue se lembrar muito da expectativa que foi ver chegar aquele dia mítico em que finalmente conheceria o calor real, aquele que a moça da meteorologia apontava no mapa. Só se lembra quando chegou, era madrugada, sentiu a diferença, sentiu que a alma estava errada em amenizar tanto a frieza do inverno. Quando acordou, 7 horas da manhã, o sol adonou-se de seu corpo, o calor sempre sonhado finalmente era uma realidade. Aquele calor foi ficando mais intenso à medida em que o dia passava.

Foi a alma que começou a reclamar, pedir sombra. Ele, então, lhe disse calmamente: imagina, a gente ainda nem está no lugar mais quente e eu estou armazenando todo o calor que posso, para quando voltar para casa e o frio chegar, eu não serei apenas ódio e reclamação. Eu vou ser todo saudade da semana em que vivi junto com os de cima o calor real, a vida fervendo de alto a baixo, eu vou ser febre e não apenas aquele tremor irritadiço do inverno e dos dias frios fora de hora. A alma Poliana contentou-se em ouvir e refrescar-se no ar condicionado. Ele armazenou o que pode e voltou para o Sul feliz.

P.S.: Texto escrito em 31 de outubro, praticamente um dia de inverno em Santa Catarina.


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