JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 21/9
(Próxima coluna 28/9)

Um Freud para nunca explicar nada

Segundo uma anedota, nada no Brasil escapa à desmoralização. A respeito conta-se o episódio da estada da bombshell do cinema francês Brigite Bardot em Armação de Búzios no litoral fluminense, a bordo do bonitão quase brasileiro Bob Zaguri: foi recebida com o estardalhaço que merecia, mas no terceiro dia de praia já era evitada. "Ih, lá vem aquela chata", comentavam os enfadados e saíam de fininho. Essa tradição do desmanche de mitos acaba de se repetir no grotesco escândalo da confecção de um dossiê falso para comprometer os candidatos do PSDB à Presidência da República, o azarão Geraldo Alckmin, e ao governo de São Paulo, o favorito José Serra. Um petista de carteirinha, Valdebran Carlos da Silva Padilha, e um funcionário da segurança da Direção Nacional do PT, o advogado e ex-agente da Polícia Federal Gedimar Pereira Passos foram presos com a boca na botija, ou melhor, a mão em R$ 1,75 milhão em notas de real e dólar para pagar a Paulo Roberto Trevisan, autor do dossiê e tio de Luiz Antônio Vedoin, dono da Planam e chefão da máfia dos sanguessugas. Os dois contaram à polícia estar a serviço de um tal de Freud. E não, não era Frodo, era Freud mesmo! O indivíduo em questão chama-se Freud Godoy, foi segurança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e teve de se afastar da boquinha que atualmente ocupava, com direito a uma sala próxima à da primeira-dama Letícia da Silva, no Palácio do Planalto. O Freud original ganhou fama porque atribuiu a culpa ao desejo libidinoso do filho pela mãe. O Freud do PT é o porta-voz da mentalidade que quer impor o teorema segundo o qual se o criminoso não se sente culpado não terá existido crime algum. Atribui-se ao Freud vienense o dom de explicar tudo. O Freud particular de Lula e do PT, ao contrário, tem a função de nunca explicar nada.


Gregório Freud?
Por haver emergido do ostracismo a bordo de um escândalo de corrupção depois de ter sido o segurança de confiança do presidente da República, Freud Godoy chegou a ser comparado com Gregório Fortunato, o "anjo negro" de Getúlio Vargas. Os compêndios de História ensinam que ele contratou Climério e Alcino para assassinar Carlos Lacerda e eles mataram o major Rubens Vaz, que cuidava da segurança deste. Valdebran e Gedimar atribuem ao habitué dos churrascos presidenciais na Granja do Torto a autoria intelectual do tal dossiê falso contra os tucanos. Mas no caso dificilmente a tragédia de agosto de 1954 se repetirá na condição de farsa neste setembro de 2006, pois Valdebran não é Climério, Gedimar não é Alcino e, sobretudo, Freud não é Gregório.


Nem Lula é Getúlio
Além disso, a situação de Lula hoje é totalmente diferente da de Getúlio há 52 anos. Enfrentando uma oposição ferrenha, vigilante e competente no Congresso e a desconfiança dos militares, o caudilho de São Borja sentiu-se acuado quando viu o próprio guarda-costas, que trouxera da estância e tratava como parente, ser preso e humilhado por oficiais da Aeronáutica na célebre República do Galeão. Essa situação desfavorável o levou ao gesto extremo do suicídio, que já o havia seduzido outras vezes antes, como revelaria, meio século depois, a publicação de seus Diários. Já o sindicalista egresso de Garanhuns está a dez dias de eventualmente se reeleger presidente da República no primeiro turno contra uma oposição desarvorada, inepta e inapetente.


Sob o sol dos trópicos
Ainda assim, é útil pôr os pingos nos is, para usar a expressão preferencial do comissário José Dirceu. O caso de Freud do Torto é mais grave que mensalão e sanguessugas, mesmo que ele não tenha sido o autor intelectual da estupidez. Sua confissão de que foi apresentado a um dos autores da façanha por Jorge Lorenzetti, por ele mesmo definido como o churrasqueiro presidencial, o põe na condição de elo entre o grupo de falsários e o chefe da Nação. E "nunca antes" fora detectada uma conexão tão próxima assim. Por muito menos que isso o escândalo de Watergate detonou Richard Nixon, o presidente americano que acabou com o pesadelo mundial da Guerra do Vietnam. Mas neste país se costuma acreditar que não existe pecado abaixo da linha do Equador.


Confiança cega
O incrível nesse caso sórdido é que, antes de voar para Nova York, para discursar na ONU, o presidente teria telefonado para seu ex-assessor de confiança questionando a quebra de confiança. Freud relatou publicamente que lhe teria respondido: "Se o problema do senhor de governar e da campanha for isso, pode dormir tranqüilo, porque tenho provas de que não tenho nada com isso". É trágico que o presidente tenha preferido inquirir o réu em vez de cobrar do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um relatório completo e circunstanciado da Polícia Federal a respeito. É sintomático que o chefe do governo confie tanto na palavra do amigo acusado que dispense o relatório impessoal de um policial.

HERÓIS BRASILEIROS

Marco Aurélio Mello

Num Poder Judiciário que se tem abastardado de forma vil ante o Executivo, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio Mello, se destaca pela coragem de abordar temas sobre os quais normalmente seus colegas no Supremo Tribunal Federal se omitem quando não se mostram submissos. Ao lembrar que a candidatura do presidente pode ser impugnada por causa do escândalo do dossiê falso, ele disse o óbvio ululante num momento em que o silêncio tem protegido tanto os covardes quanto os venais.


Freud não, Lombroso!

Num escândalo em que os personagens se chamam Valdebran e Gedimar, dificilmente o ex-assessor de Lula, mesmo batizado de Freud, chamaria a atenção pelo nome. A não ser pela circunstância nada fortuita de desonrar o sobrenome de Sigmund, que o pai lhe deu como prenome. Na verdade, seria mais coerente chamá-lo de Lombroso, sobrenome do psicopatologista e criminologista italiano de nome Cesare, que ficou famoso pela autoria da tese de que os instintos criminais de uma pessoa se expõem na configuração dos ossos de sua face. O companheiro de caminhadas de nosso "guia máximo" Lula é uma figura lombrosiana, mas mais pelo espírito que pela configuração física de homem alto, espadaúdo e mal encarado.


Conexões com Santo André
Não se sabe ao certo se o tal Fred, ou Freud, ao qual o irmão de Celso Daniel, João Francisco, se referiu, no depoimento à CPI, como o segurança que teria acompanhado Gilberto Carvalho na entrega de uma mala de dinheiro a José Dirceu seja o protagonista do escândalo do dossiê falso. Mas antes de desqualificar a lembrança do senador José Jorge (PFL-PE) só por ele ser vice na chapa de Geraldo Alckmin (PSDB) convém atentar para mais essa coincidência no caso do assassínio do ex-prefeito de Santo André. Ou terá sido um preito ao fundador da Psicanálise o ex-secretário de governo do ex-chefe de programa da campanha de Lula à Presidência abrigar o personagem na secretaria particular do presidente?

A boca formigando
A linha freudiana de análise psicanalítica exige tanta discrição do terapeuta que este não pode sequer conviver socialmente com o paciente. O Freud da Granja do Torto não tem sido, contudo, digno dessa tradição nem do voto de silêncio que devem professar seguranças de chefes de Estado. Mesmo falando pouco, ele disse demais. A citação de Jorge Lorenzetti, que trabalha na campanha e assa a carne nos churrascos do presidente, é daquelas indiscrições que prejudicam o indiscreto. Já se sabe que foi ele quem apresentou Freud a Gedimar. O que mais se descobrirá de grave quando se puxar o fio dessa meada que o ex-assessor boquirroto começou a desfiar? Em boca fechada não entra mosquito. Nem formiga!

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