Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 129 - 1ª quinzena de abril 2008
(próxima coluna: 25/4)

O 1º capítulo deste importante romance mereceu matéria de página inteira no Jornal "Amazonas em Tempo", em 13/12/07.
Clique aqui para ler a reportagem na íntegra

FOTOS DE ALGUNS PERSONAGENS (FILETO PIRES FERREIRA, EDUARDO RIBEIRO, W. SCHOLZ, ETC.) E LUGARES DO "TEATRO AMAZONAS" EM: http://www.flickr. com/photos/ 12439475@ N05/sets/ 72157603842512154/

"TEATRO AMAZONAS"
(Romance inédito)


           09. EM PARIS

           Sobranceiro, alto, forte, ereto e espadaúdo, muito elegante no seu porte fidalgo, esmerado no trajar um impecável sobretudo – o Governador Silvério Nery e o general e ex-governador do Piauí e Amazonas Thaumaturgo de Azevedo caminhavam lentos pela orla da Place de La Concorde, paravam, contemplavam o Obelisco de Luxor e fumavam.
Pouco depois, sentaram-se num café, na rue Royale.
            – No Purus, desde Terra Vermelha e Jaburu até Canacury, e no rio Acre, em Boa Esperança e Antimary, todas as atas da eleição de Eduardo Ribeiro para o senado são falsas, disse o general.
          Silvério acrescentou:
           – Imagino. Conheço bem a região.
           – Mesmo na Capital, mesmo em Manaus, a maioria das atas das seções estão fraudadas, afirmou o general.
           – Mas Eduardo controla a cidade, disse Silvério Nery.
           – Conosco estão Joaquim Serejo, Amorim Figueira e Carlos Marcelino, disse o Thaumaturgo de Azevedo.
          E depois de um gole de café:
           – Meu amigo, a eleição que supostamente elegeu Eduardo Ribeiro ao Senado em dezembro de 1896 tem de ser anulada, concluiu Thaumaturgo. Pelo bem da República. Os eleitores foram fabricados ali mesmos nas mesas eleitorais.
           – Eu sei.
           – Nas sete secções da Capital só existiam agentes de Eduardo.
           – Eu não votei, disse o Governador, estava no Rio de Janeiro, mas soube que as mesas apuradoras funcionavam em salas divididas por tapumes para impedir a fiscalização.
           – Impediram os fiscais da oposição de entrar nos recintos da votação!
           – Ele fez e desfez! Ribeiro acha que é rei, disse Silvério. Sempre foi assim. O poder o enlouqueceu completamente.
           – Mas ele já era louco antes.
           – Sim. Psicótico, como seu pai.
           – O problema dele foi subir tanto na vida. Mulato e menino pobre, viu-se depois com todo aquele poder nas mãos... Perdeu o controle, perdeu a realidade.
           – Sim, ele acha que pode tudo. A culpa disso tudo cabe ao Floriano Peixoto.
           – Sim, sim, disse o General, todos aqueles tenentinhos ligados a Floriano e ao Benjamim Constant subiram ao poder por um golpe de mágica...
           – A mágica da revolução.
           – A mágica do golpe militar que foi a chamada “proclamação” da República.
           – Mas o Rei era um fraco. E doente.
           – Deixou o poder a cargo da princesa Isabel...
           – Você viu o novo Teatro? O “Teatro Amazonas”?
           – Não.
           – O louco modificou a planta original, clássica, junto com um vigarista chamado Crispim do Amaral, e colocou uma fantasia idiota, uma colossal cúpula de escamas de vidro colorido no teto, que se ilumina. O teatro virou um circo, misto de mesquita árabe com tenda indígena...
          Riram-se.
           – Há um movimento para demolir aquela excrescência.
           – A eleição foi uma comédia: votaram eleitores não listados, alguns defuntos, e várias vezes.
          Começou a chover. Entraram no café. Resolveram jantar ali mesmo. Thaumaturgo tinha dois domicílios: um no Rio de Janeiro outro em Paris.
           – Nossos aliados votaram, mas seus votos não apareceram na contagem, disse ele, sentando-se.
          Encomendaram champanha Veuve Clicquot.
           – Havia um aparato policial para intimidar a oposição.
           – Foi negado o voto aberto, que é legal. As mesas negaram-se a datar e rubricar as cédulas.
           – Fizemos petições inúteis.
           – Ribeiro humilha a elite de Manaus. É um ditador. A justiça estadual está amordaça. O juiz federal se disse “suspeito” para receber nossa petição. A junta apuradora nem recebeu nosso protesto, nem o inseriu na ata, e no dia seguinte os jornais elogiaram a lisura das eleições. Disseram que não houve contestação nem protesto.
           – Mas o mais grave é que se fez a apuração em menos de três horas!
           – Em três horas?
           – Sim. Em três horas e meia já se tinham acabado os trabalhos.
          Riram-se.
           – Aquela reunião da junta apuradora foi mera formalidade. Em Lábrea, São Paulo de Olivença, Moura, Barcellos, Humaitá e Fonte Boa não houve eleição legal.
           – Por quê?
           – A comunicação oficial não chegou a tempo de se fazerem as mudanças pelas disposições da nova lei eleitoral, que eles desconheciam.
           – Sim.
           – No Diário Oficial de Manaus, documento quatro, de 24 de dezembro de 1896, foi publicada a lei que deveria começar a valer 3 dias depois!
           – Brincadeira (risos).
           – Sim! Na forma do Decreto nº 572 de 12 de julho de 1890 tem de entrar em vigor em três dias.
           – Em 3 a 8 dias é impossível fazer chegar a esses municípios o texto da nova lei eleitoral, situados a centenas de milhas da Capital, nos rios Negros, Solimões, Madeira e Purus. Como você sabe, os vapores não fazem mais que 7 a 8 milhas por hora, e vão parando em cada porto do caminho.
           – - Mas o resultado foi proclamado!
           – Sim! Em Canutana e em Barreirinha não houve eleição, segundo disseram nossos correligionários. Lá não se pôde obter documento algum.
           – Só em duas secções do subúrbio de Manaus conseguimos fazer valer nossos direitos. Manacapuru e Puraquequara.
           – Perto de minha fazenda, disse Nery.
           – E só em 12 seções em todo o Estado!
           – Eduardo Ribeiro preparou a eleição para si, para se eleger Senador da República. Para ele era questão de vida ou morte. Para ele era impossível perder.
           – Você sabe que ele está em Paris?

* * *

           Campo de Marte, Paris.
           De repente, porque faz sol, Lima Silva não está querendo mais voltar para Manaus. Sentava no mesmo banco da mesma praça, a imensa praça de sempre.
          Há anos ele tinha vindo àquela mesma praça, ao Campo de Marte, em frente à Torre. Nas suas costas estava a Escola Militar, onde Napoleão estudou. O frio tinha diminuído. Ele estava em comunhão, contemplação. Gostaria de ficar. Mas dentro de 6 horas tinha de voltar para Manaus. No mesmo banco da mesma praça. O mesmo jeito de contemplar. Vida estranha, mundo estranho. Faz sol.
           – Dei a Manaus todo o conforto, disse Eduardo Ribeiro a seu lado, todo o desenvolvimento material e moral. Todas as comodidades, confortos de uma cidade moderna e civilizada.
           – Qual vai ser sua maior obra? – perguntou Lima Silva.
           – Seria o Palácio... – disse. O meu Palácio! – suspirou, com um brilho de loucura no olhar. O Palácio do Governo, que eles querem demolir... Meu amigo, meus inimigos vão demolir o meu Palácio, o Palácio dos meus sonhos...
          Lima Silva percebeu que ele tinha lágrimas nos olhos. As mãos trêmulas. Eduardo Ribeiro estava pálido.
           – Mas Governador... – disse Lima Silva – o Senhor muito fez: os diversos calçamentos, a iluminação pública, a arborização, o ajardinamento da cidade, ruas e praças, as pontes, os aterros...
          Eduardo Ribeiro não mais o ouvia. Olhava para um ponto distante, como se olhasse para o vulto da morte.

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