JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, que acaba de obter o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

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BLOCOS PARABENIZA E COMEMORA A 100ª COLUNA


Voto não é detergente

Uma das lorotas mais nocivas e sem base na verdade e na lógica da política brasileira é a tentativa de atribuir ao voto popular uma inexistente natureza de detergente. Todo político acusado de algum delito que consegue retomar seu mandato nas urnas apela para esse argumento furado do julgamento popular. "Fui julgado pelo povo e absolvido. Logo, não sou bandido." Nada disso: eleição não é julgamento, urna não é tribunal, eleitor não é juiz, voto não é sentença. No Estado democrático de Direito, o cidadão é convocado para escolher entre as pessoas selecionadas pelos partidos seus representantes no Congresso e os principais mandantes do Poder Executivo. Este é seu poder. Esta é sua prerrogativa. O fato de ele escolher A ou B para aprovar leis ou gerir a máquina pública, contudo, não configura a inocência de um candidato no exercício de um mandato popular nem o de preterir outrem, sua culpa. No sistema tripartite de poderes, o Legislativo faz as leis, o Executivo as executa e o Judiciário julga se isso foi feito de forma correta. Legisladores e executivos são escolhidos pela cidadania e este é o limite final de seu poder. Ele elege, não julga. Sua opção não pode ser interpretada como pena nem como unção. A função de determinar se houve crime e quem o cometeu é da autoridade policial, que, escolhida pelos gestores públicos, exerce o monopólio do exercício da força legítima para impor a lei aos recalcitrantes. E a de julgar e condenar ou inocentar esses eventuais infratores da Justiça. Eleição não tem nada que ver com isso e dar ao eleitor poderes de policial, juiz ou carrasco equivale a aceitar decisões arbitrárias de um juiz que não ouça as razões da acusação nem da defesa do réu nem sequer compulse os autos do processo. Absurda aqui é a hipótese lembrada, não a comparação.

Malandragem matemática
Essa conversa de transferir a responsabilidade da polícia e da justiça para o eleitor é uma malandragem. Primeiro porque não são fornecidos ao cidadão os dados fundamentais sobre os eventuais delitos cometidos pelos candidatos. Assim, qualquer julgamento que ele pudesse vir a fazer seria necessariamente injusto para um lado ou para o outro. Depois também porque o sistema proporcional pelo qual são escolhidos os ocupantes das cadeiras na Câmara dos Deputados dilui a decisão do indivíduo numa complicada operação matemática que chega até a tirar o valor do voto como manifestação de vontade da cidadania. O voto proporcional é uma boa ajuda que um parlamentar malfeitor pode ter para manter seu mandato, mesmo tendo cometido um crime ao exercê-lo.

Partidos coniventes
Isso não quer dizer, é claro, que o voto majoritário para o Senado ou para cargos executivos tenha o condão, que o proporcional, não tem de julgar. Pois os candidatos a eles gozam do mesmo beneplácito que os beneficiados pela diluição propiciada pelo voto na legenda, ao estilo brasileiro. Em vez de transferir para o eleitor a função de absolver ou condenar os políticos, a justiça eleitoral e os partidos é que deveriam cumprir a obrigação comezinha de oferecer um quadro de opções mais higiênico que o oferecido. Nestas eleições o Tribunal Superior Eleitoral - TSE - tem até cumprido seu papel de aplicar o pouco rigor que a lei lhe permite usar. Mas o mesmo não se pode dizer das cúpulas partidárias que continuam coniventes com seus militantes.

Confronto de rabos-de-palha
Aliás, a primeira obrigação de punir os comprovadamente culpados é do próprio Congresso. E seus dirigentes parecem ter acordado para isso ao decidirem pôr fim ao sigilo nas votações em que a Câmara e o Senado decidem o destino de seus membros acusados de algum delito. Essa prática malsã garante ao espírito corporativo o pleno êxito da impunidade mútua com a qual a extensão do rabo-de-palha de uns leva para bem longe do fogo o rabo-de-palha de outros, de comprimento semelhante. A queda do sigilo é o primeiro passo para acabar com essa impunidade corporativista que protege os maus representantes ao permitir ao cidadão, pelo menos, tomar conhecimento da disputa tácita entre folhas corridas, embora não seja autorizado a intervir para impedi-la.

Controle externo, já!
O sigilo torna o voto punitivo de um parlamentar numa permanente anistia, o que impede o Parlamento de se moralizar e desmoraliza a instituição e a própria democracia. Só isso já justifica sua derrubada imediata. Mas ainda não garante que os membros vips do clube fechado do Congresso passem a punir colegas da corporação como deveriam. O voto aberto para cassar mandatos de deputados e senadores acusados por crimes pode constranger seus julgadores, mas a nada os obriga. Talvez o único instrumento para evitar a impunidade de mensaleiros, sanguessugas e outros tipos destes, que estão longe da extinção, seja a adoção do que já existe para o Judiciário também para o Legislativo: controle externo.

HERÓIS BRASILEIROS - BIS

Francenildo Santos Costa

O caseiro da mansão em que a República de Ribeirão Preto contava dinheiro em malas e fazia orgias com prostitutas, Francenildo Santos Costa, é herói de novo, porque a Caixa Econômica Federal não o indenizou alegando não ter quebrado, mas transferido, seu sigilo bancário. O responsável teria sido o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, candidato a deputado praticamente eleito e certamente pouco necessitado de receber qualquer indenização. Até a semântica maltrata o herói popular no Brasil.

Protesto, não; renúncia
O outro lado da moeda do voto detergente é a falácia que percorre o noticiário eleitoral e a internet, segundo a qual anular o voto é protestar. O voto nulo não é uma ação contra a desmoralização da atividade política, mas a renúncia do eleitor aos próprios poder e dever de escolher mandatários que exercerão o poder com sua autorização - e, mais que isso, em seu nome. A anulação do voto não impede a ascensão dos malfeitores ao poder - e, de certa forma, chega a ajudá-la e até a legitimá-la. A perspectiva de uma onda nacional de votos nulos que anulem o resultado da consulta popular é simplesmente irrealista. Mas, ainda que ela fosse viável, não poderia produzir mais que um impasse incômodo.

Armas em vez de mapas
Mas outra eventual eleição seria realizada dentro de normas idênticas à anulada. E não há perspectiva de que a nova disputa pudesse ser mais seletiva que a anulada. Resta, é claro, a alternativa da ruptura das regras e das instituições. Mas esta certamente não é uma justificativa nobre para o protesto contra a malversação dos recursos públicos, além de não ter antecedentes que autorizem algum tipo de esperança em suas conseqüências positivas. O êxito de golpes do gênero depende de canhões e metralhadoras, nunca de mapas eleitorais. E essas aventuras que põem as instituições de pernas para o ar não costumam pôr termo à roubalheira ou à incompetência, mas apenas a ocultá-las da vista de todos.

Na tela, o Che real
Por indicação do cineasta paraibano Ipojuca Pontes, vi o filme Cidade Perdida, de Andy Garcia. Os críticos estão tratando a obra com desprezo, dando-lhe, no máximo, uma estrela, mas esta é uma injustiça que só pode ser entendida pela simpatia que o velho tirano cubano Fidel Castro ainda desperta nos intelectuais de esquerda. A fita é uma ode lírica e bela, não a um idílico paraíso tropical sacrificado ao ideal revolucionário, mas, sim, a uma pátria tornada proibida por ditadores corruptos ou cruéis. Vale a pena assistir sem preconceito por causa da trilha sonora, do entrecho e da desmistificação de ídolos como Che Guevara, melhor retratado nele que em Diários de Motocicleta, de Walter Salles.

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