Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://www.geocities.com/rogelsamuel

Nº 132 - 2ª quinzena de maio 2008
(próxima coluna: 10/06)

O 1º capítulo deste importante romance mereceu matéria de página inteira no Jornal "Amazonas em Tempo", em 13/12/07.
Clique aqui para ler a reportagem na íntegra

FOTOS DE ALGUNS PERSONAGENS (FILETO PIRES FERREIRA, EDUARDO RIBEIRO, W. SCHOLZ, ETC.) E LUGARES DO "TEATRO AMAZONAS" EM: http://www.flickr. com/photos/ 12439475@ N05/sets/ 72157603842512154/

"TEATRO AMAZONAS"
(Romance inédito)


           12. ELEAZAR DE CARVALHO EM MANAUS, PROBLEMA DE ACÚSTICA

          – Mas uma concha acústica é indispensável para a realização de concertos nas salas de espetáculos, disse José Brandão, já suado e nervoso.
          – Sim, mas nós não temos...
          – Como não? Gritou o outro. Por que não?
          – Nós tínhamos uma caixa acústica... chamada de “caixa timpânica”... mas foi retirada nas reformas do governo Efigênio Sales
          – O que é uma caixa timpânica, perguntou o deputado Lourival Gadelha que estava perto.
          – É um equipamento cênico que tem a dimensão total da área de cena e que se monta e desmonta no palco sempre que necessário.
          – Sim.
          – São paredes laterais, parede de fundo e teto, feitas de material refletor acústico. Envolvem a orquestra, disse Brandão.
          – Sim, concordou, o deputado.
          Essas paredes oblíquas entre si, em ângulos criteriosamente definidos, de forma a garantir os níveis de reflexão e reverberação adequados, dando melhor audição para o público e músicos. O som tem que ser jogado para fora do palco uniformemente, permitindo o equilíbrio das diversas sonoridades de acordo com a formação da orquestra.
          – E quando não estão sendo utilizadas?
          – Elas saem. São móveis.
          – Explique melhor, repetiu o deputado.
          – Os diversos instrumentos emitem diferentes sons em todas as direções, disse Brandão, e uma considerável parte desses sons se perde no volume da caixa de palco, ao invés de preencher acusticamente a sala de espetáculo. A concha acústica conduz a sonoridade para o público, garantindo uma boa audiência em todas as partes da sala de espetáculo.
          – Agora entendi, disse o deputado.
          – Outra questão da maior importância é que os músicos têm de ouvir muito bem uns aos outros, para conseguirem tocar em harmonia. E para o solista, para o bom desempenho do solista, é fundamental garantir o que chamamos de conforto acústico.
          – Sim. Sim. E agora? Que faremos?
          – Uma caixa de palco como a do Teatro Amazonas sem uma concha acústica montada se revela como o pior espaço possível para um concerto. Os sons se misturam, viram barulho.
          Foi chegando o Maestro Eleazar de Carvalho e todos se calaram de repente.
         A Orquestra Sinfônica de São Paulo, naquele ano de 1981, se apresentaria no Teatro Amazonas, com seus 87 músicos.


          – Como está a acústica, Maestro, perguntou, timidamente e temeroso, João Brandão.
          – Péssima, respondeu Eleazar. Péssima. A acústica não é boa para a orquestra, está muito seca.
          – Para compensar essa deficiência são necessários muitos instrumentos, explicou. E depois de olhar em volta:
          – O espaço é insuficiente para reverberar, para rebater o som.
          – Como assim? Perguntou o deputado.
          – Por exemplo: cada som teria de percorrer 152 metros e voltar. Aqui ele vai (ele fez um gesto), e quando volta o outro ainda está saindo.

          Foi interrompido por João Brandão, o engenheiro do som:
          – Maestro, verificamos que há um porão vazio nas mesmas dimensões do palco, aqui abaixo de nós... E que lá em cima tem uma caixa d'água.
          – Ótimo, respondeu Eleazar de Carvalho. Serão usados como “caixas de ressonância”.
          Foram ver a “caixa d'água”: era a tal “caixa-timpânica” que por um mecanismo de correntes descia até atrás da caixa do palco, fechando-a.
          Era a primeira vez que Eleazar se apresentava em Manaus. Sua apresentação foi um sucesso.


          Cerca de 85 anos antes, e m Manaus, Lima Silva tinha sido chamado pelo ex-governador Ribeiro à sua chácara. Ele agora era advogado e graças à sua inteligência tinha uma banca rica e famosa. Teve de levar Marinalva, que fez um escândalo para ir junto. Quando ele disse que estava indo à chácara de Eduardo Ribeiro ela não teve dúvida:
          – Ou me leva ou eu te mato.
          Brandia um garfo.
          – Mas, meu amor, vou a serviço...
          Não teve jeito. Ribeiro era o grande ídolo político dela. “O maior homem da história”, dizia ela. Não ia perder nunca aquela oportunidade de conhecer o Pensador.
          

          – De que o acusam, Governador? – perguntou Lima e Silva, olhando profissionalmente o outro.
          – De tudo, doutor, de tudo! Calúnias! Mentiras!
          E colocou um copo d'água em sua frente e uma jarra de refresco de manga sobre a mesa, perto de Marinalva. Estavam na copa do governador, que era o lugar mais fresco da casa, sentados ao redor da mesa quadrada coberta de papéis.
          – Beba um refresco, madame, disse ele.
          – Muito obrigada, Governador, respondeu ela, lisonjeada.
          Eduardo Ribeiro falava como se dirige às massas, ainda que estivesse apenas com o advogado e sua esposa.
         Aquela copa era o seu gabinete de trabalho, anexo à sala de jantar. Era a primeira vez que o advogado entrava na mansão que Ribeiro chamava de chácara, o chalé da Cachoeira Grande. Ribeiro tinha móveis exóticos, importados de vários lugares do mundo (algumas cômodas venezianas e poltronas voltaire talvez tivessem vindo do Teatro Amazonas), tapetes exóticos, quadros de Crispim do Amaral, pássaros, animais raros, jardins de orquídeas, catléia superba, catléia el-dorado, lago, tanque com cisne, um pequeno bosque ricamente preparado, caramanchões. Ribeiro vivia suntuosamente no seu pequeno palácio.
          Eduardo Ribeiro passou para o outro uma folha de papel com a lista dos seus bens em discussão.
          – Ladário e Gregório me acusam de enriquecimento ilícito.
          – Sim, disse o outro.
         Marinalva começou a se meter na conversa:
          – Cretinos! disse ela. Vão pro Inferno!
          Lima Silva tentou impedi-la de falar, mas Eduardo Ribeiro se antecipou:
          – Vão mesmo, madame, disse ele, gostando.
          E a seguir:
          – Vejamos: O primeiro terreno... Sim, o primeiro terreno comprei de Juvêncio Alves. É posse antiga, na Praça da República. Custou 5.000$000.
          Lima Silva anotou esse número numa folha de papel.
          – Os terrenos número 2, 4 e 16 dessa lista, disse com naturalidade Ribeiro, foram comprados aos herdeiros do Capitão Nuno por 600$000, 2.000$ e 500$000 respectivamente. Estão fora de Manaus.
         Marinalva jogava todo o seu charme em cima de Eduardo Ribeiro. Em dado momento encostou sua perna por baixo da mesa na dele. Ele delicadamente se afastou. Como ela repetiu alguns minutos depois, ele deixou e com a mão acariciou-a por entre as pernas, curvando sobre o papel que o marido estava atentamente lendo.
          Lima Silva nada via ou fingia não ver. Examinava as contas e começava a ver dificuldade.
          – O terreno número 3 está avaliado em 150$ e me foi doado pelo Dr. José Mello, juiz de direito. Está fora da Capital.
          – Continue, governador.
          – O terreno número 5 foi comprado por 100$000 ao Doutor Joaquim Lalor.
          – O senhor dispõe dos recibos, não?
          – Sim, claro, todos. O Thaumaturgo diz que custou 1.500$000.
          – Mentiroso! – disse Marinalva. E conseguiu dar um leve beliscão na coxa do outro.
          Lima Silva suspirou, bebeu um gole de água. Mas Eduardo Ribeiro gostou do apoio e disse:
          – Sim, madame, mentiroso e covarde!
          E continuou:
          Os terrenos de 6 a 16 estão na mesma situação, disse Eduardo Gonçalves Ribeiro com muita dignidade. E foram comprados pelos preços que estão nas escrituras.
          Houve um silêncio constrangedor na sala.
          – E os prédios? – perguntou, com voz neutra, o Dr. Lima Silva.
          – Sobre os prédios que possuo em Manaus... No da Praça da República gastei 49:684$200 na sua construção.
          Eduardo Ribeiro citava de memória, que era prodigiosa.
          – Este chalé aqui não custou 500 contos, como o crápula inventou! Gastei 48:800 para construí-lo. Não é luxuoso, como o Senhor vê, apenas especial e elegante.
          E levantando-se caminhou até a sacada, de onde apontou:
          – Não tenho raridades da natureza, como a acusação aponta, mas uma variedade de animais que mandei vir da América.
          – São lindos, disse Marinalva.
          Ele, voltando para Lima Silva, disse:
          – Tenho um prédio, que o Senhor certamente conhece, na rua Henrique Martins, comprado por 30 contos...
          – Muito bonito por sinal, disse Marinalva.
          – Obrigado Madame, sim, é bem elegante.
          E a seguir disse:
          – E a casa de minha velha mãe, no Maranhão, na rua de Santana número 110, comprei por 6 contos.
          – Como ela está? Perguntou Marinalva.
          – Não muito bem, madame. Está quase cega de um olho e tem fortes dores reumáticas.
          – Reumatismo? Eu tenho um santo remédio, disse ela, tentando ajudar. Diga para tomar extrato de sucupira, bem forte, toda manhã...
          – E a casa de sua irmã? Perguntou Lima Silva, tendo disfarçar o vexame.
          – A casa de minha irmã, na rua São João, no Maranhão, foi-me doada, em 1893, por amigos de Manaus, que não quiseram revelar o nome.
          – Vejamos os ativos monetários, Dr. Eduardo.
          – Sim, sim. No Banco do Amazonas tenho 30 ações de 200$ cada uma.
          – Na Cooperativa Militar?
          – Ali tenho apenas 172 ações que valem 20$ cada uma. Eu as comprei quando ainda era estudante.
          – No Maranhão?
          – No Maranhão tenho 17 ações da Companhia de Viação Maranhense, hoje muito desvalorizadas.
          – Sim, disse o outro. Eu conheço.
          – E aqui tenho 3 carroças e um carro de luxo – uma vitória, o senhor viu – que comprei por 9:000$.
          Lima Silva já estava atônito, mas não se revelava. Mantinha-se de reserva. E perguntou:
          – O Senhor, Governador, tem com provar a origem desses bens? Quanto recebeu?
          – Certamente, disse o outro com uma calma palaciana.
           E tirando um papel da gaveta começou:
          – Como comandante militar recebi 12 contos oitocentos e setenta mil réis (12:870$000).
          E continuou:
          – No meu primeiro mandato, como Governador Provisório, recebi 9 contos novecentos e quarenta mil réis (9:940$000).
          – Sim, estou anotando.
          – Como tenente recebi novecentos mil réis (900$000).
          Marinalva estava sorridente e flertava abertamente.
          – Sim, pois não.
          Eduardo parou, para refletir. Depois disse:
          – Como Governador do Amazonas, no meu segundo mandato, recebi 137:500$000.
          – E como Capitão do Estado Maior?
          – Recebi 13:250$000.
          Lima Silva rapidamente somou.
          – Somando tudo dá uns 173:420$000, disse Lima Silva.
          – Sim, disse o ex-líder, com voz de liderança. Mais o que recebi como professor particular, de gratificações, de orçamentos e consultorias deve somar uns 200 contos. Sempre fui muito econômico, todos sabem.
          Marinalva aplaudiu.

          Sem se importar, Lima Silva parou para refletir um momento e começou a bater com o lápis nos dentes.
          Fez-se um silêncio diplomático.
          Depois Lima Silva disse:
          – Governador, vai ser difícil para mim. Eu não me sinto preparado para defendê-lo. Está acima de minhas qualidades jurídicas. Para este caso eu aconselharia um advogado do porte de Ruy Barbosa.

 

          Na despedida, já à porta, Marinalva beijou Eduardo Ribeiro. Ela era bem mais alta que ele e teve de curvar-se.
          – Governador, disse ela, o senhor é o político mais honesto que eu conheço. Eu o amo, Governador! Eu o amo!
          – Obrigado! Obrigado, minha senhora, respondeu Eduardo Ribeiro beijando sua mão e realmente feliz.
          E acrescentou:
          – Em todo caso, doutor, gostei muito de sua visita. Venham os dois jantar comigo na quinta-feira. Eu insisto!


          E foi assim que, graças a Marinalva, começou a grande amizade de Lima Silva com Eduardo Gonçalves Ribeiro.

         O que ele nunca soube foi que, já no dia seguinte, depois que ele saiu para o escritório, Marinalva foi ao Mercado e lá um emissário secreto do ex-governador entregava nas mãos de sua mulher um bilhetinho do governador.

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