Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 154 - 2ª quinzena de maio 2009
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

            O IGARAPÉ DO INFERNO, 12
           
 (Romance inédito)

            – Você está dormindo, seu veadinho de merda! Não? Não está?
            Pois digo: Pierre Bataillon avançou naquela parte mais íntima, mais esotérica da floresta, igarapé acima.
            Ele costeava os limites imprecisos da morte. Da sua morte!
            Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas.
            É o que digo, Pierre deixava presentes, miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira.
            Os Numas nunca tocavam naquilo.
            Entre o Seringal e os Numas não havia comunicação.
            O quê? Sim, sim, o Seringal, à espera.
            Os Numas, na observação, invisíveis, os putos.
            Pierre evitava a guerra, buscava solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seus princípios, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte.
            Você sabe o que é a morte? A morte? A morte é isto, o que eu hoje sou... olhe pra mim... olhe pra mim!... nos meus olhos você a vê... nos meus olhos você vê o espelho da morte, à medida que morro estou e sou a própria morte!

            Não, não se assuste. Apenas ouça.

            Pierre era aquele homem magro, baixinho, tinha 1,50m de altura, elegante no cotidiano, no dia a dia, já saía do quarto todo vestido, arrumado, empertigado, ereto, a cabeça levantada, bigode à Vercingetórix, como o de Nietzsche, com quem se parecia, altivo, mas sem ridículo, ele era neto do Duque de Cellis, uma das linhagens mais nobres de Espanha, família de reis, que vinha da antiga Roma, passava pelos reis de Espanha, inteligente, culto, falante em vários idiomas, sempre ao lado de sua silenciosa mulher, D. Ifigênia Vellarde, peruana de Resvalladero, católica, filha bastarda de índia quíchua com o primo do nobre boliviano D. Angel Vellarde – derrotado em 1902 por Plácido de Castro, na Batalha de Santa Rosa – ela não gostava do luxo, era doceira, bordadeira exímia de vestidos de seda rosa cálido, tinha dois grandes diamantes como grossas lágrimas caindo dos lóbulos das orelhas, quais espantosos sóis, e sua ascendência foi usada pelo marido em alianças e pactos durante a Guerra do Acre, quando ele fez o hábil jogo da duplicidade, com brasileiros e bolivianos, ficando em paz com os dois lados, dos dois tirando proveito, principalmente valendo-se do fato de estar protegido da guerra por uma impenetrável massa de 400 km de floresta, de pântanos e de flores, sim, era impossível conceber como sobrevivia aquele fidalgo, engastado na floresta, cercado de luxo, de livros, de violinos, de quadros e de móveis...

            – “Assim é o látex”, dizia ele – “elástico como o caráter". E sai daquelas árvores como coisa fundamental, gomosa, líquido viscoso sob a casca do corpo, o pus, o plasma aquoso branco, a goma, a seiva selvagem do muco que faz sangrar a floresta pegajosamente, o pus, a terra e o esperma...
            – "É assim a seringa... o sangue da Amazônia que colhemos como um estranho mal e que um dia teremos de pagar, muito caro”.

            Sim, sim, Pierre se mantinha moralmente firme, naquele tempo, quando se sitiava o Seringal num cerco, num campo de concentração durante o cerco da dominação Numa.

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