Solange Firmino

Professora do Ensino Fundamental e de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio. Escritora, pesquisadora. Estudou Cultura Greco-romana na UERJ com Junito Brandão, um dos maiores especialistas do país em Mitologia.

Mito em contexto - Coluna 123
(Próxima: 20/9/2012)

Caronte e a travessia no Hades

Na divisão do reino de Crono, cada irmão obteve um domínio: Poseidon ficou com o mar, Zeus com o céu e Hades com o mundo subterrâneo, também denominado Hades, a morada final dos mortos. Segundo alguns mitos, o reino de Hades estava localizado em um abismo encravado nas entranhas da Terra, sua entrada se situava ao sul do peloponeso ou em uma caverna na ao sul da Itália. O Hades aparece em inúmeras lendas, como os doze trabalhos de Hércules, o rapto de Perséfone e os castigos eternos de transgressores das leis divinas, como Sísifo e Íxion.

Para os que acreditam na sobrevivência do espírito, o rito fúnebre pode ser uma preparação para outra vida. Os parentes mais próximos tinham obrigação de sepultar os mortos, pois acreditavam que a alma penaria por anos seguidos, sem direito a julgamento. O sepultamento consistia de vários ritos, como colocar o cadáver numa mortalha com o rosto descoberto, para que a alma pudesse ver o caminho até a outra vida.

Não era fácil chegar ao Hades, mesmo depois de morto. O deus Hermes conduzia a alma/psiqué até a margem de onde o barqueiro Caronte realizava a travessia pelos quatro rios infernais: Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte. Caronte recebia como pagamento uma pequena moeda (óbolo) colocada na boca do sepultado. Alguns colocavam bolo de mel junto ao morto, o que lhe permitiria agradar Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada e saída do local. Se ele permitisse a entrada de alguém, com certeza não permitiria a saída. Em um dos seus doze trabalhos, Hércules entrou e saiu do Hades ao vencer Cérbero em uma luta e levou-o por um tempo para a corte de Euristeu.

Passando por Cérbero, a alma chegava diante de Perséfone e Hades e depois ouvia a sentença dos juízes Éaco, Radamanto e Minos. Julgada por seus atos, a alma era encaminhada para o tormento ou paraíso e ocupava um dos três compartimentos: Tártaro, Érebo ou Campos Elísios. O Tártaro era a parte mais profunda e lugar dos tormentos. Érebo era a parte com provações que visavam ao aperfeiçoamento. Os Campos Elísios eram como o céu cristão, e único local de onde partiam os candidatos à reencarnação, após se libertarem das impurezas materiais. Daí as almas eram levadas ao rio Lete para esquecerem do passado e poderem reencarnar.

Alguns ilustres personagens da mitologia passaram pelo Hades ainda vivos, entre outros, Orfeu e Psiqué. Esta realizou uma perigosa descida a esse reino, em defesa de seu amor Eros. Levou nas mãos bolo de mel e cevada para apaziguar Cérbero e na boca as moedas para pagamento a Caronte. Como umas das provas que enfrentou, a mando de Afrodite, teve de lidar com a tentação de ajudar um cadáver erguendo a mão podre pedindo ajuda para entrar na barca. E ela resistiu.

Orfeu desceu ao Hades para recuperar a amada Eurídice. O músico encantou o reino subterrâneo, e os condenados ao suplício eterno tiveram suas cargas aliviadas por um instante. Encantou Caronte, Cérbero, Perséfone e Hades. Este, comovido com a prova de amor, atendeu ao desejo de Orfeu e permitiu que Eurídice voltasse ao mundo dos vivos se Orfeu não a olhasse até alcançar a luz do sol, mas Orfeu se virou e a perdeu para sempre. Orfeu foi associado ao Orfismo, culto de mistérios que pregava a reencarnação e a origem divina da alma; ele teria feito revelações aos iniciados sobre os mistérios da morte, que aprendeu na descida ao Hades. Os iniciados depositavam nos túmulos fragmentos de mensagens, como uma espécie de bússola que guiava a alma no Hades.

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