Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 160 - 2ª quinzena de agosto 2009
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

O IGARAPÉ DO INFERNO, 18 (ÚLTIMO CAPÍTULO)
(Romance inédito)       

                      Manuel Bastos, entretanto, piorou e entrou em coma. Um dos seus últimos momentos lúcidos foi perguntar por seu gravador. Ele queria dizer algo, como que fazer um depoimento. Mas logo nada conseguiu falar e desfaleceu, sendo levado para o hospital.

                      Depois de sua morte não mais se ouviu falar dos depoimentos chamados por ele de “O igarapé do inferno”.

                      Aquelas páginas datilografadas ficaram esquecidas na gaveta de uma cômoda até que ser comprada pelo autor dessas linhas em 1972.

                      Na realidade, abandonei o incômodo móvel numa casa alugada na rua Prof. Eurico Rabelo, perto do rio Maracanã, que não existe mais.

                      Os textos permanecem comigo, até hoje.

                      Com Manuel Bastos morreu o último remanescente daquela época.

                      O Palácio Manixi desapareceu na floresta completamente. Hoje é difícil localizá-lo. As ruínas daquela construção talvez ainda estejam lá.

                      O relato de Benito Botelho, que o viu pela última vez, diz:

                      “Súbito, na margem do rio, apareceu uma mulher vestida de verde que dançava na parte elevada do terreno e com o braço erguido sustentava um vaso de onde partia uma seringueira já crescida. O tronco da árvore passava por trás da estátua de mármore agora verde que D. Ifigênia Vellarde tinha trazido da Europa no fim do Século passado.

                      ATRÁS daquela mulher congelada estava - magnífico, supremo, inominável, majestoso - o Palácio Manixi!

                      TINHAM chegado ao Manixi.
                      O choque era alucinante e belo.
                      Das janelas abertas saíam grossos e longos galhos de árvores frondosas, nascidas por dentro, e assim parecia que o Palácio tinha criado asas e ia começar a voar.
                      O Palácio se cobrira de uma pátina de beleza extraordinária, de uma vitalidade monumental - estava ali, vivo, lavado, enlouquecido marco de seu tempo.
                      Era um santuário, dominava o ambiente, um templo antigo, perdido no meio da floresta, de uma outra era. Toda a luz ao redor irradiava dele, de uma civilização de um outro século, de um outro mundo desconhecido, limite vivo do luxo e do esplendor da borracha do fim do Império.
                      A floresta avançava contra ele, construindo um estranho cerco sobre a moldura e irisação de sua arquitetura antiga coberta de cipós e de galhos de uma folhagem abundante que vinham de dentro dos salões requintados e criavam a aura de um extasiante espetáculo.

 

                      A lancha aportou e Benito desceu e se aproximou da escadaria de mármore. Uma cascavel se recolheu por baixo das pedras soltas da guarnição.
                      Ali estava todo o passado da Amazônia, sobre os degraus cobertos de folhas secas, sobre o fino e florido gradeado de ferro carcomido e enferrujado.
                     A porta estava aberta. Do pórtico, Benito viu, no meio do amplo salão, sobre o chão de tábuas corridas cobertas de plantas e a ruir, intacto, nobre, faústico, o reduzido piano de cauda Pleyel de Pierre Bataillon. Era a única peça do aposento, o único móvel que ficara e ali estava, abandonado, fechado, reprimido, sufocado, em silêncio, como após um concerto, quando se apagam as luzes e o teatro fica vazio e despovoado.

 

                      MAS todos os suntuosos fantasmas exsurgiam dali. Toda a História desfiava o seu curso. O tempo ali se congelava, inerme, no meio dos amplos salões, desaparecendo ao longo daqueles mesmos corredores, escorrendo ao longo das paredes pesadas de estuque, lúgubres, de uma decoração barroca. Eram seres invisíveis que despontavam, uma vez mais, arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas, esquálidos, saídos daquele sepulcro do luxo daquele tempo, através daqueles amplos espaços povoados de símbolos, dentro daquela enorme construção de um outro mundo, do fim de um mundo de onde todos tinham fugido, povoado de demônios, culpados, expiando suas culpas mortas.
                      E à noite desfilavam, ao longo daqueles corredores, através da seriação de janelas e portas, refletindo suas sucessivas silhuetas nos espelhos apagados, misturando-se com figuras pintadas nas paredes, e famintos, gélidos, sem ousar sair ao jardim abandonado, aquém do porto as ornadas figuras de fino e feroz olhar que não permitiam a ninguém penetrar naquele santuário do desperdício da riqueza antiga e condenada, ninguém pudesse subir aquela escadaria e atravessar aquelas salas além daqueles mármores trazidos há incontáveis anos para ladear-se com o cinzento e o estilizado. Era como se dissessem: “Desaparecei!”. Ou como se ameaçassem: “Afastai-vos!”.
                     E à noite a figura do antigo e descamado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si - e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado”.

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