JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 14/6
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O país dos impunes

                        E Vavá, hein, mano?

Os jornais registraram que o Lula real ficou furioso com o curto intervalo entre a notificação que lhe fora transmitida por telefonema internacional pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, e o momento em que seu irmão Genival Inácio da Silva, o Vavá, foi surpreendido com indiciamento pela Polícia Federal (PF), sob suas ordens. Pode ser que sim, pode ser que não! Ninguém nunca vai confirmar. Ninguém nunca vai desmentir. Mas o que o Lula oficial falou foi registrado e virou palavra de ordem: ele não crê que o irmão tenha feito algo errado, mas nem mesmo alguém que ele conhece intimamente muito bem há 61 anos (desde que nasceu, então) pode se considerar a salvo das devassas espetaculares que sua PF tem feito. Entre elas a que investiga Vavá, cujo título - Xeque-mate - denuncia um apito final bem pouco provável.

A inclusão de Vavá entre os notáveis devassados pode transmitir a impressão de que, enfim, a navalha age na própria carne, atingindo a intimidade familiar do chefe do governo. A impressão parece falsa. Vavá pode ter comportamento primário, mas não é primário em matéria de suspeição: já freqüentou o noticiário de escândalos no primeiro mandato. Não há investigação policial ou processo judicial que justifiquem mais que a presunção de inocência que qualquer acusado tem desde as eras dos antigos romanos. Enquanto ele e os outros manda-chuvas do grupo que está no comando não forem definitivamente inocentados ou punidos, a República lulista continuará sendo, como o Brasil dos coronéis com ou sem farda foi, o país da impunidade. Com o cínico dístico no melhor portunhol collorido: duela a quien duela!

 

E não vale a lei para os compadres do rei?

                        O falso dossiê antitucano e os dólares na cueca não foram punidos

Este jornal noticiou anteontem em manchete que a Polícia Federal concentrará o inquérito da Operação Xeque-Mate no petista Dario Morelli, compadre do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e tido como sócio de Nilton Cezar Servo, apontado como chefe da máfia desbaratada, que explorava caça-níqueis. A sentença enunciada nesta abertura de texto contém um teor explosivo que os cuidados nela exigidos e exibidos podem não bastar. De um lado, um chefe de governo, que deve ser ilibado por definição. Do outro, um suspeito de pertencer ao crime organizado. E, no meio dos dois, o compadre, o sócio.

Convém, pois, esclarecer logo que o compadrio é uma prática antiga na política nacional. Próceres batizam filhos de seus eleitores com prodigalidade demais e, normalmente, atenção de menos. Quando Leonel Brizola pretendeu lançar-se candidato à sucessão do irmão de Neuza, sua mulher, João Goulart, tratou de preceder a campanha de um slogan, que se tornaria célebre e paradigmático: “Cunhado não é parente.” Da mesma forma, hoje da relação entre Lula e Dario é justo estabelecer que “compadre não é parente”. Mas irmão é. E parente de primeiro grau. Ainda assim, não se pode inculpar Sua Excelência por nenhum dos ilícitos dos quais é acusado seu mano mais velho, Genival Inácio da Silva, o  Vavá. Até Jimmy Carter teve seu irmão-problema, sem falar em nosso José Sarney, uma espécie de compadre virtual de Lula, sempre às voltas com o Vavá dele, de nome Murilo. Só que sempre fica um travinho na goela por conta da proximidade, da intimidade. Isso mesmo esquecendo logo de saída a deixa ancestral de Júlio César, que, para se livrar da bela Pompéia Sula, suspeita de receber atenções masculinas indevidas, condenou a própria cônjuge pelo fato de apenas parecer, mesmo não sendo provado que ela retribuísse tais atenções. Ao contrário dos tempos prévios àqueles famosos idos de março, esta nossa era e esta República são outras: nelas, às mulheres, aos compadres, parentes e amigos do peito não apenas se concede o direito de parecer, como o de se valer de qualquer negativa, por menos documentada que seja, como prova decisiva de sua inocência e da má-fé do acusador, seja quem for.

O que difama esta República não é tanto o irmão pródigo do chefe de Estado tolerante e tolerado, mas, sim, o Estado permissivo e negligente que este comanda e o sistema de leis e normas que existem só para inglês ver (sem entender, diga-se). O Estado aprecia o espetáculo e dissemina a falsa idéia de que para punir um suspeito de ter cometido algum delito basta expô-lo à execração geral. Tolice: José Genoino ouviu imprecações do eleitorado quando foi votar, mas nem por isso deixou de ser eleito deputado federal, após ter assinado documentos para lá de heterodoxos na condição de presidente de um partido que infringiu de diversas formas a lei, que dizem ser o império de uma democracia que se preze. O conceito republicano da “mulher de César” não se aplicou ao nobre parlamentar nem atingiu seu irmão (ele também tem um irmão-problema) José Nobre Guimarães, cujo ex-assessor José Adalberto Vieira da Silva foi preso no aeroporto com US$ 100 mil na cueca.

Aos protagonistas do caso em questão não se aplicou o tal conceito milenar, mas uma lei bem mais recente, cunhada pelos hábitos da República Velha e do mandonismo de Artur Bernardes: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei.” Outros dois petistas foram beneficiados pelo mesmo expediente: Gedimar Passos e Valdebran Padilha foram flagrados com a chamada boca na botija, ou melhor a mão na massa: a PF, sempre a PF, pilhou-os com R$ 1,75 milhão num hotel perto do aeroporto e um dossiê encomendado a falsários para prejudicar o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra, anulando seu favoritismo. Na condição de sabe-se lá o que de sabe-se lá quem ligado a alguma instância próxima ao rei (que só é paralisado, como até Ciro Gomes sabe e parece que a PF também, pelo xeque-mate), não foi lavrado o flagrante desses dois senhores, que, submetidos à prisão temporária, foram soltos no quinto, como manda a lei (que juiz nenhum se negará a aplicar) para este caso específico. Eles foram chamados de “aloprados” por Sua Majestade, mas até agora nada têm a pagar na Justiça.

Exemplos como estes são empilhados nos arquivos dos jornais e não há espaço aqui para esgotá-los. O ex-ministro Saulo Ramos teve a pachorra de fazer as contas e, em seu livro Código da Vida, conta que a PF já processou, indiciou e prendeu 6 mil brasileiros pela polícia espetacular dos governos Lula. Mas ninguém foi condenado. Não dá, porém, para deixar de lado o companheiro Antônio Palocci, visto pelo caseiro Francenildo Santos Costa freqüentando uma mansão suspeita, onde lenocínio e corrupção pareciam gêmeos siameses. Como Genoino, Palocci elegeu-se com facilidade deputado federal, goza de imunidade parlamentar e foro privilegiado, enquanto a testemunha infeliz perdeu emprego, mulher e paz. Nenhum dos delinqüentes que quebraram seu sigilo bancário e tornaram pública sua condição de bastardo foi punido pela lei dos homens. Todos gozam a anistia ampla, geral e irrestrita da impunidade dos todo-poderosos.

Pode ser que a desproporção absurda entre os capturados pela polícia e os apenados pela Justiça se deva a excessos dos que prendem e algemam. E o ministro da Justiça, Tarso Genro, houve por bem anunciar um projeto para acabar com abusos e violências contra a cidadania como algemas, camburões e escutas telefônicas indiscriminadas. Na certa, também, a lerdeza e a permissividade do Judiciário contribuem para a conta. O certo é que a soma de tais fatores torna esta a Pátria da impunidade, em particular para parentes, compadres e amigos do rei.



Assim parece, se for

Júlio César era um estrategista genial e um grande escritor, mas, como político, nem se comparava com seu sobrinho Otávio, que poria fim à velha República romana, tornando-se imperador e adotando como título o sobrenome do tio que o antecedera. Se fosse melhor político, não se teria deixado engolfar pela conspiração que o abateria aos pés da estátua do ilustre patrício que derrotara, Pompeu. De qualquer maneira, o conquistador da Gália deu pelo menos um golpe bem-sucedido em matéria de política doméstica. Queria se livrar da mulher Pompéia e se aproveitou dos mexericos de que ela recebia amigos do sexo masculino em casa enquanto ele comandava legiões em territórios inóspitos e longínquos. Dispensou a necessidade de apresentar provas e, como aquele coronel citado na comédia de Juca de Oliveira, mandou o in dúbio pro reo (na dúvida, a favor do réu) às favas junto com os escrúpulos. Decretou: “à mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta”. A sentença genial ganhou foros institucionais e as democracias decentes a usam para determinar os limites dentro dos quais os gestores republicanos devem agir. Mas na república populista brasileira, toda minúscula mesmo, a regra foi invertida: o rei, a mulher do rei, os irmãos do rei e até os compadres do rei não precisam ser nem parecer. Só têm de negar.

E já que falamos de Roma, continuemos lá, lembrando a frase famosa que Pompeu, o mesmo que César destruiu, usou para concitar seus soldados a subirem nas naus indefesas que precisavam cruzar o Mediterrâneo infestado de piratas para buscar trigo em Cartago, na África, e acabar com a fome em território latino. Num arroubo de retórica, o comandante decretou: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Os alunos do infante Dom Henrique na escola de navegação de Sagres a adotaram como lema. Fernando Pessoa citou o lema como epígrafe de Mensagem , o único livro que publicou em vida. Caetano Veloso se apropriou dele num fado. E terminou virando seu autor, para muita gente. De nada adianta, pois hoje na república populista do PT, não é preciso navegar nem viver, basta negar. Negar ainda que seja batom na cueca, como diziam os cafajestes de antanho para salvar casamentos combalidos por noitadas de uísque, sexo e samba-canção. Ou melhor, na nova linguagem republicana nacional, pode-se até negar  dólares na cueca. Pois negados são sempre perdoados.

Apesar de dita “velha” a primeira república brasileira é bem mais nova que a romana, certo? Pois. Fiel à truculência disfarçada da manha mineira, ela adotou como lema a estratégia de Artur Bernardes, que consagrou a lei definitiva do coronelismo tupiniquim: “para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei”. Desmoralizada a lei, os neocoronéis do petismo no pudê , com o apoio da malta tucana e “democrata” (com aspas mesmo), modernizaram o dístico, mantendo-o em essência, mas acrescentando um necessário toque de fervor religioso: “e para os militantes da causa operária, indulgências plenas”.

Ainda no Império, os malandros da Lapa já diziam “antes tarde do que nunca” para justificar atrasos e procrastinações, vícios longevos de nossa identidade sociológica e cultural. Já os inconfidentes mineiros clamavam por “liberdade, ainda que tarde”. A retórica lulista juntou o lema libertário com a moral da navalha e da pernada criando o lema definitivo: “nunca antes, ainda que tarde”. Neste nosso Brasil de hoje em dia, vale o teorema de Lavoisier revisto pelo palhaço Chacrinha, o Velho Guerreiro tropicalista do tempo da televisão à lenha, mas também adaptado às novas condições: “nada se cria, tudo se copia, para não ter de pagar direito nem autoral”. E por aí vamos, pois, como dizia o Canhotinha: “quem não gosta de levar vantagem em tudo”, né não? Como diriam o mano Vavá e o compadre Dario (ou seria o Roberto?), assim é se lhe parece. Ou melhor, assim parece se for.

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