JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Colunas de 21/6
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Ivan Junqueira, clássico e moderno sem contradição

Global publica a seleção dos ‘melhores poemas' do autor de ‘A Rainha Arcaica', feita por Ricardo Thomé; o escritor alia erudição, rigor e sensibilidade sem concessões ao facilitário.

Caro leitor, se de fato decidiu adquirir o livro Ivan Junqueira, seleção de Ricardo Thomé (coleção “Melhores Poemas”, da Global Editora, 256 pp., R$ 35), é melhor que seja logo informado de que nele não encontrará poemas-piadas nem trocadilhos tratados como se fossem peças de arte ou outros facilitários do gênero. O poeta selecionado não se dá a desfrutes tais nem cultiva essas comodidades: ele prefere o trabalho duro, a pesquisa atenta, a garimpagem paciente, em que a jaça não polui o metal precioso nem a pedra contém imperfeições. Ivan Junqueira não brinca em serviço: domina o ofício como poucos e como raros sabe que a preguiça do estilo é o pai de todos os vícios de linguagem. Suas flores da fala são cultivadas à distância das ervas daninhas e não brotam nos jardins da inspiração, mas na terra seca da erudição. Daí não resulta obra fácil e ele não é um poeta fóssil. 

              Ao contrário. Ao mergulhar nas trevas dos sótãos em que espiona os mistérios da morte, do amor e da arte com as lentes da dúvida filosófica, o poeta carrega numa mão a vela do conhecimento e na outra o fósforo da habilidade no manejo verbal. Dito isso, é bom preveni-lo também, cauteloso leitor, de que Ivan Junqueira pode não ser o único poeta clássico em atividade na literatura brasileira, mas, sem sombra de dúvidas, é o mais equipado para sê-lo e o que melhor realiza a tarefa inglória de depurar no laboratório da língua mais pura o material orgânico retirado da lama das sarjetas com o ácido corrosivo da observação profunda, lúcida e cínica que foi buscar nos mestres, sejam eles habitantes de outros planetas lingüísticos, como Saint-John Perse, Rimbaud e sobretudo Eliot, de quem é tradutor juramentado e tido como imbatível; sejam patronos do que de melhor produziu a inculta e bela, do fundador Camões a Jorge de Lima, passando por Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e, last but not least, Fernando Pessoa, como Ivan poeta de poetas; sejam outros sócios da confraria dos zeladores de poesia e prosa, tais como Dante Milano, Álvaro Mendes, Leonardo Fróes e Per Johns.

             A esfinge e o enigma - Uma relação assim extensa não pode dar ao leitor, a não ser por pressa, a impressão fátua de que se trata de um poeta de pouca originalidade. Qual o quê! Ivan Junqueira é poeta originalíssimo. Em sua estréia, Os Mortos (1956-1964), ele diz a que vem logo na primeira estrofe do primeiro poema, o que dá título à coletânea: “Os mortos sentam-se à mesa, / mas sem tocar na comida; / ora fartos já não comem / senão côdeas de infinito”. Eis um quarteto perfeito na forma e no conteúdo, cuja construção delineia desde logo toda a obra a ser produzida depois, nestes 40 anos que a separa de nós. Aí já está o navegar cauteloso nas águas densas do mistério a um ritmo compassado de remos, que ao leitor é dado mais intuir que ouvir.

              Algumas páginas adiante, o leitor atento encontrará em mais uma estrofe inicial, a do poema Signo & Esfinge, o complemento a essa quadra inaugural com outra também fiel ao espírito “eliotiano” do ritmo determinado pelo silêncio como sendo o melhor para a melhor poesia - só que neste caso contendo a definição simples e direta do tema poético e da forma mais adequada de tratá-lo. Ele registra: “Toda esfinge exibe um signo / visível de seu enigma, / embora quem o pressinta / jamais lhe decifre a escrita.” Aqui está em quatro versos a mais exata, et pour cause, não necessariamente a mais precisa, a mais simples, embora não forçosamente a mais fácil de ser entendida, explicação para a disfunção que é em si a função da poesia. Ele diz de outra forma o verso célebre de Pessoa (“o mytho é o nada que é tudo”), que usaria como epígrafe em Rainha Arcaica, de 1979.

              Autor de momentos antológicos da poesia em português, tais como o fecho de Elegia Íntima (”Minha mãe chorando no fundo da noite / apunhalou o sono de Deus”), em que faz da memória matéria metafísica sem nunca perder a clareza, ou o de Inês: Indícios (“A ruína que vês, posta em decúbito, / já teve porte e postura, mas súbito / a infanta de si própria se fez pântano”), o poeta, cuja obra foi selecionada e apresentada com desvelo e competência pelo poeta e romancista Ricardo Thomé, é respeitado por sua obra ensaística - e esse respeito é merecido. Mas neste ambiente em que se busca reduzir o estro à verve, é sua obra poética que chega às livrarias para resgatar a certeza perdida de que a poesia pode servir ao mesmo tempo à beleza estilística e à veiculação da angústia ancestral que transforma a vida humana em estrupício, delícia e malícia, esse alternar de dor e gozo que torna o trajeto do berço ao túmulo ao mesmo tempo absurdo e instigante.

             Leia, pois, o poeta - que reza “Eu sou apenas um poeta / a quem Deus deu voz e verso” em Prólogo, um dos oito poemas que eram inéditos - antes que a pseudopoesia escatológica nos reduza a lacaios de nossos instintos.




         HOJE


         A sensação oca de que tudo acabou
         o pânico impresso na face dos nervos
         o solitário inverno da carne
         a lágrima, a doce lágrima impossível...
         e a chuva soluçando devagar
         sobre o esqueleto tortuoso das árvores

                  Ivan Junqueira - Os Mortos (1956-1964)



         EPITÁFIO

         De tua história, nada;
         ou tudo, se quiseres:
         entre uma e outra data,
         a fábula de seres
         nunca o tangível, mas 
         o pássaro, o maralto
         (o passo, não: o salto
         em vão, fora do espaço), 
         o amor, vale dizer:
         sua forma álgida e rara, 
         avessa à coisa amada 
         – e, súbito, colher
         a morte, flor cediça, 
         dentro da vida. 

                  Ivan Junqueira


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