JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

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Poeta de bancada

          De camelô precoce a autor de TV

O poeta de bancada é, por necessidade, um pau-pra-toda-obra. Mas até nisso o cearense Antônio Clevisson Viana de Lima exagerou. Se seus antecessores na arte ancestral de fazer romances em versos rimados e metrificados para as populações simples do interior nordestino se viam obrigados a ilustrar e imprimir seus folhetos antes de dependurá-los nos cordéis para vendê-los nas feiras-livres sertanejas (daí, o nome do gênero), sendo homens de sete instrumentos para sobreviver, não será exagero dizer que o tema deste livro é um homem de 70 instrumentos – ou quase. Com apenas 31 anos de idade, Klévisson, como se assina o poeta, ou AKLÈVISSON, como registra nos acrósticos das estrofes com que, de forma tradicional, conclui seus romances, cria, desenha, diagrama, imprime e comercializa suas obras, além de se encarregar de fazê-lo para mais de 40 outros criadores do gênero, os sem-prelo. Sem trair a tradição, ele o faz utilizando-se das técnicas mais atuais, rimando poesia com tecnologia como poucos: impressão em off set e marketing up to date.
Klévisson nasceu (em 3 de novembro de 1972) no interior do Ceará, no burgo de Quixeramobim, do qual, traído pela mulher, vestindo uma bata de tecido rústico e empunhando um cajado, partiu rumo ao sertão da Bahia, onde fundaria Canudos no fim do século XIX, Antônio Vicente Mendes Maciel, que, conhecido pela alcunha de “Conselheiro”, ganharia as páginas da História e seria tema do maior clássico da Literatura Brasileira, Os Sertões, de Euclydes da Cunha. Na Fazenda Ouro Preto (que, segundo ele, os matutos locais chamavam de “Toco Preto”), aprendeu a ler como todos os meninos sertanejos na Carta do ABC. Na cidade onde nasceu chegou até o primeiro ano do segundo grau, pois em 1980, ao completar oito anos, mudou-se com a família para Canindé.
Fé e comércio - Como Juazeiro do Norte, Canindé é um dos centros da devoção popular da fé católica, não apenas no Ceará, mas no Nordeste inteiro. O autor destas linhas nasceu na casa avoenga, de calçada alta, na Fazenda Rio do Peixe, em Uiraúna, no alto sertão da Paraíba, em cujas paredes havia quadros de Nossa Senhora das Dores, com Padre Cícero, é claro, pois essa era a padroeira de Juazeiro, situada na região do Cariri, cujo principal pólo é Crato, e também de São Francisco das Chagas – não de Assis, nem Xavier, mas do Canindé. Este mesmo escriba foi peregrino em Canindé, levado pelos pais para pagar a promessa da cura de um tétano contraído ao pisar num prego enferrujado da tábua de uma obra no Instituto Redentorista Santos Anjos de Campina Grande, onde estudava.
Para o sertanejo, pois, Canindé é uma espécie de Meca ou Medina da fé católica nos poderes miraculosos da fé em seu padroeiro, São Francisco das Chagas. Na Basílica é possível encontrar de tudo o que se encontra em Aparecida do Norte, Lourdes ou Fátima: cultos religiosos, velas acesas e ex-votos. Nas proximidades dela também é encontradiço o comércio que gira em torno de todos os lugares para os quais acorrem multidões: santeiros, vendedores de velas, artesãos que fabricam reproduções monstruosas dos órgãos pretensamente beneficiados pelos milagres, comida, bebida e bugigangas em geral. No caso específico desses centros de fé no interior nordestino, há uma natural ocorrência de artistas e poetas populares, dos desenhistas de retratos aos poetas de bancada.
De família de camponeses pobres, forçado a trabalhar para prosseguir nos estudos, Klévisson ingressou naquele mercadão ambulante aos nove anos de idade, vendendo bombons no inverno, artigos religiosos no verão e velas no Dia dos Finados. Dessa forma, travou contato com sertanejos de todos os rincões nordestinos, peregrinos pagando promessas ou em busca de milagres no pátio da Basílica. E também se tornou amigo de cordelistas vindos de outros lugares para vender sua arte aos romeiros do Canindé.
Vocação e destino – Se bem que esse universo mágico da poesia popular não era novidade para o menino. Sua avó paterna era uma pessoa esclarecida, dada a leituras, e havia inoculado no pai um gosto especial pelos romances de aventura, humor, conhecimento e fé contidos nos folhetos comprados em feiras. A família era possuidora de um acervo razoável desses folhetos, que o pai costumava ler para os filhos quando voltava do trabalho duro – de sol a sol, como se diz por lá – de semear e colher no semi-árido.
Desde cedo, o pequeno vendedor ambulante manifestara também uma queda natural para o desenho. Note-se que as artes gráficas desempenham um papel de supina importância no desenvolvimento da poesia de bancada no interior do Nordeste. É necessário aqui abrir parêntesis para lembrar que os folhetos de cordel substituíam os meios de comunicação nas vilas interioranas nordestinas no começo do século XX. As capas dos romances reproduziam normalmente clichês contendo fotos relativas aos fatos neles descritos ou de artistas da moda para o caso de episódios de amor ou versões simplificadas de clássicos da literatura, principalmente da literatura européia medieval. A necessidade de chegar logo ao público, sem ter de esperar a demorada viagem dos clichês das gráficas dos jornais da capital até o interior levou os poetas e gráficos a recorrerem a santeiros e outros artistas populares, encomendado-lhes xilogravuras, que passaram a substituir os clichês nas capas dos folhetos dos anos 1930 para cá. Mas, como lembra o próprio Klévisson em entrevistas dadas a jornais do Brasil ou do Exterior, ou para pesquisadores acadêmicos do tema, até hoje o público tradicional sertanejo prefere as capas com clichês às xilogravuras, favoritas, por sua vez, seja dos turistas nacionais ou estrangeiros, seja desses pesquisadores de universidade, brasileiros ou estrangeiros.
Os parêntesis, aqui fechados, foram necessários para esclarecer que a vocação, que se tornaria destino, do camelô infante de Canindé, também tinha a ver com seu convívio com mercadores do pátio de milagres da Basílica, na infância e na pré-adolescência. E foi dessa mistura de artista e comerciante que nasceu o precoce promotor e agitador cultural canideense do final dos anos 1980. Aos 14 anos de idade, ele já fazia ilustrações para jornais de bairro daquela cidade. E antes de deixar a terra de adoção, passando a viver desde o último decênio do século XX na capital do Estado, Fortaleza, usou sua experiência de vendedor ambulante para promover, ainda adolescente, salões de humor e outros eventos culturais na cidade que deixaria para continuar a perseguir seu destino num centro mais apropriado e mais avançado a seu enorme talento, sua vocação e seu destino inexoráveis.
Humor e amor – Quando se mudou para Fortaleza, Klévisson passou a fazer parte do verdadeiro contingente de humoristas cearenses que invadiu o Brasil daqueles tempos para cá. “O povo daqui é extremamente alegre, apesar das desgraças que sofre”, definiu, com exatidão, o conterrâneo de Chico Anysio, Falcão e Tom Cavalcanti. E foi durante o reinado desses conterrâneos nos shows humorísticos de televisão, teatro e música popular que ele se tornou ilustrador do jornal O Povo, de Fortaleza, de 1990 a 1995: “Sem dúvida alguma, (essa) foi a minha grande escola”, informa.
Sua carreira de desenhista, iniciada precocemente, tem sido, sem favor algum, brilhante: em 18 anos de carreira, assinou dezenas de capas e ilustrações de livros e folhetos de cordel. Foi editor, com o jornalista Tarcísio Matos, da página Muro Baixo, com charges, cartoons, caricaturas e piadas em textos, em outro jornal de Fortaleza, a Tribuna do Ceará. Nela publicou, além de seus desenhos frases que denunciam seu talento para o humor escrito, tais como esta: “O cúmulo do ecologismo é comer flores para enfeitar os vasos sanguíneos”.
Vendo o irmão Arievaldo Viana desenhar tiras de comics, ele descobriu seu talento de quadrinista, com o qual se tornaria vencedor do prêmio nacional HQ Mix, o mais importante do País no gênero, na categoria graphic novel, com sua historieta Lampião... Era o cavalo do tempo atrás da besta da vida, cuja edição (de início, por ele mesmo bancada, mas disso aí se tratará mais adiante) já vendeu mais de 10 mil exemplares.
A historieta (cuja segunda edição foi lançada pela Hedra) narra o massacre de Angicos, a grota sergipana em que as tropas policiais, sob o comando do tenente Bezerra, deram cabo, em 1938, de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, Maria Bonita e o núcleo de comando do grupo de cangaceiros mais famoso de todos os tempos. Com linguagem cinematográfica, técnica visual irrepreensível e uma pesquisa semântica (ele diz ter levantado 400 expressões de gíria sertaneja para escrever os diálogos das tiras) e iconográfica muito cuidadosa (o último capítulo – intiulado “Cacarecos, catrevagens e garatujas” - do livreto reproduz as vestimentas e utensílios dos cangaceiros e seus coiteiros e vítimas), ele atingiu seu objetivo de mostrar ao público leitor as diferenças existentes entre Tom Mix e Corisco. Para quem achar estranha essa afirmação talvez seja útil informar que a transformação do cangaço em western brasileiro tem propiciado uma estranha simbiose entre o vaqueiro do oeste americano e o bandoleiro do Nordeste brasileiro, não apenas para as populações do Sudeste e do Sul distantes, mas também para o próprio público nordestino.
A pesquisa acurada dessa “saga em quadrinhos de Klévisson” – que inclui a leitura de 26 livros, 18 artigos de jornais e revistas e 7 folhetos de cordel, além da visão de 13 filmes, entrevistas pessoais com Vera Ferreira, neta de Lampião, e com o especialista Antônio Amaury Corrêa de Araújo, e até a participação num simpósio sobre o tema na Fundação Memorial Padre Cícero em Juazeiro do Norte, Ceará – levou a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo a adotar a obra como “material paradidático”. E foi um condão para o autor, como revela, ao reconhecer: “Esse trabalho abriu inúmeras portas. Tive matérias publicadas em jornais e revistas de todo o Brasil.”
Ele mereceu o comentário entusiástico do especialista paulista Álvaro de Moya, em sua introdução: ´”É extremamente saudável quando vemos uma produção nacional fora do eixo Rio-São Paulo. Seja no cinema, teatro, música, balé ou qualquer outra área artística. A cultura brasileira deve se manifestar em todos os pontos do País. Aqui, neste caso, temos uma história em quadrinhos concebida e realizada em Fortaleza, Ceará. E com uma temática telúrica, nascida da terra castigada. Celeiro dos problemas sociais graves, distorcidos pela exploração do homem pelo homem. A Guerra de Canudos, a Marcha de Prestes e verdadeiras obras-primas da literatura nasceram aqui. Também a revolta popular dos cangaceiros, cujo nome mais famoso é enfocado pelo artista Klévisson: Lampião. Com um traço pessoal e um enfoque original, linguajar característico e grande pesquisa, Antônio K. Viana Lima conseguiu um trabalho uno e impressionante.”
O romanceiro do camelô infante – A primeira edição da obra premiada foi de uma então desconhecida gráfica e editora cearense, a Tupynanquim – Aldeia, Mídia & Tal, fundada e tocada pelo próprio artista em sociedade com alguns amigos, entre os quais o irmão Arievaldo, em cuja parceria resolveu cumprir outro objetivo de sua vocação e destino: “Eu tenho necessidade de passar adiante as histórias que ouvia sobre o sertão. Contá-las, antes que as apagasse da memória.” E foi assim que o ilustrador, caricaturista, chargista, cartunista e frasista de jornais, além de autor de projetos gráficos de várias publicações para a Unicef e conterrâneo do letrista e parceiro de Fagner Fausto Nilo (natural de Quixeramobim, sim, senhor) se tornou também poeta e editor dos próprios folhetos de cordel – e não apenas dos dele, mas também dos escritos por outros: mais de 40 poetas do Brasil inteiro, que fazem parte do catálogo da editora, cuja marca explicita a paixão do proprietário pela palavra. Pois é uma fusão de tupiniquim, o indígena da tribo que se tornou sinônimo de brasileiro, para o bem ou para o mal, com nanquim, a tinta chinesa usada pelos ilustradores e cartunistas para a realização de seus trabalhos.
A Tupynankim foi criada numa época em que são cada vez mais raros os prelos de cordel pelo interior do Nordeste. No fim do século passado, o professor Átila Almeida e o poeta popular José Alves Sobrinho fizeram uma paciente e detalhada incursão pelos sertões nordestinos em busca delas e só encontraram praticamente lembranças. Os velhos prelos sumiram – e com eles os verdadeiros poetas de bancada, reunidos numa preciosa Bio-bibliografia que esses dois denodados especialistas realizaram para a Universidade Regional do Nordeste, em Campina Grande, Paraíba. O próprio Klévisson, que se tornou um especialista no assunto, é capaz de contar os sobreviventes na ponta dos dedos: além dele próprio, os renitentes José João dos Santos, o célebre Mestre Azulão, Elias A. de Carvalho, Gonçalo Ferreira, José Costa Leite, José Mapurunga, seu irmão Arievaldo Viana Lima, Rouxinol do Rinaré, Vidal dos Santos e Manoel Monteiro, que escreve clássicos do romance de bancada, manuais para a sobrevivência de diabéticos e livretos de ocasião, além de lutar para criar em Campina Grande um monumento ao poeta popular.
O ouvinte atento dos folhetos da avó em Quixeramobim, camelô precoce de Canindé, criador dos salões de humor de Fortaleza e competidor da Luzeiro (editora paulistana, que ainda reúne o acervo mais completo dos clássicos do gênero no Brasil, a mais de 2 mil quilômetros de seu público original, mas no centro da diáspora nordestina, o bairro do Brás, na maior metrópole nacional) merece estar nessa plêiade. Uma antologia de seus versos de divulgação ou de ocasião nesta edição lhe dará, preclaro leitor, uma idéia aproximada da variedade do talento desse romancista, repórter e versejador, que lamenta não ser repentista, por falta de coragem (o que significa que não lhe falta talento).
Improvisos sobre realidade e fantasias de ficção – Com a mesma pertinácia com que andou remexendo na memória do sertão do cangaço, Klévisson fuçou a tradição da poesia popular de bancada e se aventurou por todos os gêneros. Nada escapou a sua argúcia e a sua verve. Como cordelista, ele é:
1 – O repórter – Como já teve este escriba, que abusa de sua paciência de leitor, ocasião de observar, um veio importante da tradição cordelística sertaneja é o improviso sobre a realidade. Sem jornais que circulassem no interior, sem acesso às transmissões radiofônicas e ainda sem televisão, os sertanejos tomavam conhecimento dos fatos cotidianos ou históricos através dos romances que adquiriam nas feiras-livres semanais de suas acanhadas cidades. Numa prova de que de repentista Klévisson tem o talento, embora lhe falte a coragem de improvisar em cima dos rigorosos cânones da cantoria poética, ele não tem deixado escapar fato relevante que lhe mova o estro.
Lembre-se o preclaro leitor do jegue impávido que levou mísseis ao alvo desejado por seus donos, terroristas iraquianos, desafiando o poderio militar americano, causando tumulto nas ruas da Bagdá invadida e passeando pelo meio daquele caos todo como se nada tivesse com a hora do Brasil, como diz o povo dos sertões daqui. Pois bem, ao que saiba este introdutor, até escrever este texto, essa imagem da impotência do poder continua inédita nos versos de Klévisson. Mas, numa evidência de que poesia e profecia são mais que rimas, o jovem versejador cearense não deixou escapar a notícia de jumentos vendidos a R$ 1 real a cabeça, que considerou pejorativa e foi dada no programa de Jô Soares na Rede Globo de Televisão. E produziu, em parceria com o irmão Arievaldo, o irresistível folheto Carta de um jumento a Jô Soares. A carta teria sido ditada a Rachel de Queiroz, conterrânea de Klévisson recentemente falecida, em sua fazenda de Não me Deixes. Aqui reproduzo um verso do recado, dado ao humorista de TV pelo humorista do cordel:
Às vezes eu me pergunto
Como simples animal
Sem nós o que é que seria
Da História Universal?
Trabalhamos pra valer
E vem você nos dizer
Que só valemos um real?
E para não dizer que o jegue de Bagdá foi esquecido pela concorrência desleal do jegue do Ceará, é útil que se registra que não passou despercebida ao poeta a invasão pelos americanos daquele país asiático. Ela foi registrada em versos por ele, numa parceria com Geraldo Amâncio, O conflito do Iraque e os três tiranos da guerra:
George Bush está querendo
Ser de Deus substituto
Pra ele, só ele é dono
Do poder absoluto
Só ele é quem é legítimo,
O resto é subproduto.
Da mesma forma como não lhe havia passado sem registro o fato mais importante da História deste século XXI (e pretexto para a invasão do Iraque pelo César Bush) - os atentados terroristas que demoliram as Torres Gêmeas em Nova York e parte do Pentágono, em Washington, em 11 de setembro de 2001. Em mais uma parceria com Arievaldo, Klévisson registrou:
Milhares de inocentes
Perderam a vida num dia
Vítimas de um atentado
Retrato da tirana
Conflito, ódio e vingança
Formaram esta alquimia.
Com as limitações impostas pelas dimensões desta apresentação (até por não querer ocupar o espaço que o leitor teria lendo as obras selecionadas do próprio autor), convém ainda chamar a atenção para alguns registros que o poeta-repórter fez de fatos importantes da História contemporânea do Brasil: a morte do prefeito de Santo André e coordenador de programa de governo da campanha de Lula, do PT, à Presidência da República, Celso Daniel, e a vitória do próprio Lula na eleição presidencial de novembro de 2002.
Eis aqui uma estrofe de A peleja de São Paulo com o monstro da violência, em parceria com Téo Azevedo, para dar uma idéia da agilidade do repórter cordelista que versejou sobre o apagão, no momento em que ele ocorria e que no meio da confecção deste folheto registrou um fato corriqueiro para dar exemplo de como o tema o assaltava em plena terra de Piratininga:
Enquanto a gente escrevia
Esta história de cordel
Do sétimo andar assistimos
O roubo de um corcel
Já era de madrugada
Sem podermos fazer nada
Contra o bandido cruel.
Agora outra estrofe, desta vez de A grande vitória de Lula – O Brasil sem medo de ser feliz:
O que nosso povo espera
É um Brasil soberano
(Uma Pátria bem mais justa)
E um líder mais humano,
Pra livrar nosso povo
Do amargo desengano.
2 – O romancista –  Se não chegavam jornais ao interior nordestino, também não sobravam livros por lá, a não ser nas casas paroquiais (numa delas este escriba aprendeu a amar as letras) ou nas inacessíveis (até aos próprios donos) bibliotecas particulares das elites dominantes. O povo, que freqüentava as feiras livres, se encantava com as histórias de Sherazade das 1001 noites e de duques e donzelas medievais pelas versões que delas faziam os grandes cordelistas, entre os quais os preferidos de Klévisson – Leandro Gomes de Barros, o maior de todos e por ele biografado num folheto, José Pacheco, José Camelo e Joaquim Batista de Sena, etc.
O jovem cearense se mostra um fabulador à altura de clássicos como Pavão misterioso ou O País de São Saruê ao recriar as viagens de aventuras de Hércules e outros heróis mitológicos a partir de padrões fixados na literatura medieval européia e reproduzida nos folhetos de cordel de antigamente. Merecem ser destacados dois títulos de escol: O boi dos chifres de ouro ou o vaqueiro das 3 virtudes e O príncipe do oriente e o pássaro misterioso, que se tornam merecedores desde sua publicação de figurar em qualquer antologia do gênero que seja digna dessa denominação.
Eis, como exemplo, a penúltima estrofe do segundo romance de ficção:
Mariana e Tranqüilino,
Muito felizes, casaram...
Do mesmo ouro do chifre,
Os anéis encomendaram
(Dinheiro e felicidade
Do velho e do boi herdaram).
3 – O quengo – O chifre, não o de fantasia, de ouro, do boi desse romance, mas o metafórico, é tema de outro gênero em que Klévisson se destaca, como, aliás, já foi insinuado no início deste texto: o humor, danação de cearense. Os “quengos”, definição dada para os amarelos que conseguem driblar a desgraça com jeito e graça, tornaram-se famosos com sua celebração em O Auto da Compadecida, momento mais alto da comédia teatral brasileira, em que o mestre Ariano Suassuna consagra Chicó e, principalmente João Grilo, amarelo, cuja saga celebra a substituição da valentia de vaqueiros mitológicos, como Tranqüilino, em sagacidade. No reino de Pedro Malasartes, Canção de Fogo, Bocage e Camonge (sim, os poetas portugueses viraram “quengos” no sertão), Klévisson pontifica. São de sua autoria obras como Viagem ao país de São Cornélio, na qual, sob o pseudônimo de Espírito Santo de Antenor Galhudo, glosa a traição conjugal, tema recorrente no humor popular, O cantor e a meretriz ou a puta que comia fotos do ídolo, Viva a Vaia! O dia em que o Ceará mangou do Sol ou ainda O rapaz que namorou com a velha dos papangus pensando que era a Carla Perez. A meio caminho entre humor e reportagem situa-se Martírios de um alemão ou “O conto da Cinderela) (A comédia do turismo sexual).
4 – O historiador – Klévisson e seus parceiros também fizeram incursões na área da história e da biografia, abordando assuntos que vão do cangaço (A história Completa de Lampião e Maria Bonita, em parceria com Rouxinol do Rinaré, com quem também assinou Os Sertões de Conselheiro de Euclides e Gereba) ao cinema (Charlie Chaplin, o Carlitos: Do Big Bem à coluna da hora).
5 – O inventor de episódios – A reprodução de desafios de repentistas (pouco importando se ocorreram ou foram inventados) tornou-se um gênero importante mormente por causa do extraordinário sucesso feito pelo folheto contando a peleja entre o Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Klévisson também freqüenta o gênero com A insustentável peleja de Zé Maria de Fortaleza com Calixtão de Guerra, O tremendo duelo de Quirino Beiçola com Tomaz Tribuzana, A grande peleja de Beneval com José Mota Pinheiro, etc.
6 – O adaptador – Outro hábito freqüente entre os cordelistas é o da adaptação, não apenas de romances clássicos da literatura medieval européia ou clássica grega, mas dos próprios colegas folhetistas. Klévisson também não deixou de visitar o gênero, indo de Homero (Helena de Tróia e o cavalo misterioso) a Zé Pacheco (cujo clássico A intriga da cachorra com o gato virou seu O divórcio da cachorra), passando por A história de João e o pé de feijão.
Da feira-livre à telinha - Para não tornar essa introdução ainda mais cansativa do que já ficou, convém encerrar lembrando que não apenas Jô Soares atendeu ao apelo do cordelista (“espero que tenha espaço / Na sua televisão / Para ler minha cartinha”, reza o folheto Carta de um jumento a Jô Soares), levando-o ao programa, para deleite da platéia, como a Rede Globo de Televisão adaptou para a série Brava Gente um romance de autoria do assunto deste texto – A quenga e o delegado, cuja última estrofe reza (em acróstico, como convém):
As portas do cabaré
Klévisson cantou no verso
Lançando então, com sucesso,
Essa saga genial,
Vale ela contra o Mal –
Isso sim é que é cordel!
Sentido, prumo e papel,
Sérgio Braga confirmou:
O delegado findou
No caldeirão de Lusbel.
Esse folheto faz parte do catálogo da editora, com quase duas centenas de títulos e, ao ser adaptado pela televisão, mostra que Antônio Clevisson Viana de Lima usou a vocação e cumpriu o destino para confirmar o que disse em entrevista a Sylvie Debbs, autora de um texto de apresentação desta coleção, publicada na revista francesa Lattitudes: “(O cordel) é uma arte viva. Enquanto houver poetas no Nordeste, haverá cordel!”
Amém, poeta! Amém, nós todos!

José Neumanne, sertanejo de Uiraúna, Paraíba, é jornalista, escritor, poeta, editorialista do Jornal da Tarde, além de comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT.

Folhetos selecionados:
A quenga e o delegado
O príncipe do Oriente e o pássaro misterioso
O boi dos chifres de ouro ou o vaqueiro das 3 virtudes
Carta de um jumento a Jô Soares
O sangrento atentado terrorista que abalou os EUA
Viagem ao país de São Cornélio
A peleja de São Paulo com o monstro da violência
O conflito do Iraque e os 3 tiranos da guerra
O divórcio da cachorra

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