JOSÉ NÊUMANNE
Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

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Borges, um leitor apaixonado

        A leitura do interessantíssimo artigo de Ermelinda Ferreira sobre o leitor como personagem da literatura aguçou algumas lembranças muito caras de minha vida de leitor amador e redator profissional. 
        Ermelinda fez muito bem em convocar o fantasma de Dom Jorge Luís Borges para abordar o tema. Vai ser difícil encontrar exemplo melhor de um leitor apaixonado. E era cego. Imagine o paciente leitor se não fosse. 
        Só nos vimos uma vez. Para mim, foi inesquecível. 
        Lembro-me que trabalhava no Jornal do Brasil e fui escalado para cobrir a eleição presidencial no Peru – aquela vencida pelo delfim de Haya de la Torre, Alan Garcia, vulgo Galan Garcia. Eleito com uma avalanche de votos, foi expulso do país e é procurado pela justiça... por corrupção. 
        Em Lima, uma estranha cidade sem telhados, pois lá não chove há mais de 200 anos, por causa do fenômeno El Niño, o mesmo que impede que chova em meu árido sertão natal, e com seu cheiro muito peculiar - uma mistura de urina (os limenhos urinam em público com a maior tranqüilidade) com peixe (farinha de peixe é sua maior fonte de renda). Tinha lido Conversação na Catedral e fiz questão de conhecer o Catedral, um boteco imundo em cujas mesas Mario Vargas Llosa instalou os dois personagens desse romance panorâmico sobre a alma e a política de sua Pátria. Na verdade, gostei mais do bar do que do próprio escritor, que me pareceu distante, vaidoso, arrogante até, e protegido por uma barreira intransponível erguida por sua mulher, Patrícia, é isso mesmo a prima Patrícia de Tia Júlia e o Escrevinhador. 
         Mas o protagonista dessa história não é Vargas Llosa e sim outro grande escritor sulamericano. Em Lima, conheci uma repórter do jornal argentino El Clarín, Susana Colombo, e ela me contou uma história que me encantou: um colega seu do jornal entrevistou Borges em seu apartamento na Calle Maipu. Ao terminar a visita, o gênio dirigiu-se sorrateira e timidamente ao jornalista visitante e perguntou: 
        – O sr. dispõe de um pouco de tempo? 
        –  Claro, sr. Borges. Por quê? 
        –  Então, por favor, abra uma enciclopédia qualquer e leia um verbete. Qualquer enciclopédia, qualquer verbete.

         De volta ao Brasil, li na primeira página do Caderno B uma reportagem do correspondente da agência espanhola Efe, em Buenos Aires, contando a mesma história. Só que em vez de pedir para ler um verbete, Borges lhe ditou um poema. Maria Kodama, hoje sua viúva, à época sua secretária, estava em Tóquio e ele precisava da ajuda de estranhos que lhe batessem à porta para “ler” ou “escrever” um poema. 
         Alguns dias depois, fui escalado para cobrir o julgamento dos militares pela recém-instalada democracia argentina. Ao chegar a Buenos Aires, tracei um plano para ler um verbete ou anotar um poema para aquele que eu considerava o maior escritor vivo do Planeta. Telefonei-lhe do hotel, marcamos um encontro e me dirigi ao austero apartamento da Maipu, perto da Praça San Martin, no centro de Buenos Aires. 
        Apesar de o gravador de bolso ter falhado, lembro-me nitidamente daquela conversa numa manhã fria de Buenos Aires. Prometo poupar-lhe os detalhes e anotar apenas o essencial sobre o tema proposto por Ermelinda: 
        1 – O genial escritor de Ficções disse-me que ler é um luxo de beócios. Ele só teve esse vício quando era jovem. À medida que amadureceu, ele preferiu sempre reler. É claro que a memória não me traz mais as exatas palavras que pronunciou, mas me lembro bem que ele me disse que ler algo novo, inesperado, causava-lhe quase sempre frustração. O poeta aconselhou-me a reler especialmente dois prosadores: Josef Conrad e Euclides da Cunha. 
        Este pobre imbecil que lhes escreve arriscou, meio timidamente: 
        –  Mas o sr. lê português, Dom Borges? 
        –  Você não me entendeu – interrompeu-me, brusca, rispidamente:  – eu leio Euclides.

        Era como se o autor de Os Sertões tivesse uma língua particular. E quem era eu para contestá-lo? Certo?

        2 – Dom Jorge nutria solene desprezo pela imprensa. Achava que a invenção de Gutenberg era uma das maiores responsáveis pelo “emburrecimento” da humanidade. Ele gostaria de ter vivido no tempo dos copistas, aqueles monges medievais que anotavam com sua caligrafia bem desenhada os textos que seus colegas de claustro teriam de ler. O trabalho penoso dos copistas funcionava como um rigoroso sistema de controle de qualidade, a seu ver. A facilidade da publicação de textos impressos por tipos móveis o irritava: “Veja o que ocorre por causa da imprensa: imprime-se qualquer porcaria. Qualquer idiota escreve qualquer coisa. Você não acha isso um horror?”, perguntou-me, quase exigindo a confirmação. Claro que concordei – logo eu, pobre de mim, que vivo do que imprimo.
           3 – Apesar de tudo isso, o grande escritor portenho se dizia um leitor fanático. Ler, para ele, sempre foi muito mais prazeroso do que escrever. Ainda recentemente, descobriram as fitas de umas palestras que ele andou proferindo em Harvard. Elas foram degravadas e os textos publicados em livro editado no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Sua leitura, é claro, é mais que recomendável. Numa das palestras, ele disse que a leitura é garantida: não há perigo de o leitor ser frustrado por um bom autor. Enquanto a escritura é decepção na certa: não há perigo de alguém escrever um texto à altura de um Cervantes, um Camões, um Shakespeare... 
           Tamanha era a paixão de Borges pela leitura que ele conta numa dessas palestras que sua maior frustração é quando vai a uma livraria e encontra um livro sobre um tema que lhe interessa muito – poesia finlandesa medieval, por exemplo (pode?) - e ele não pode comprá-lo... porque o livro já está nas prateleiras de sua biblioteca. Confesso uma honrosa coincidência com Borges: também me frustro muito quando não compro um livro só por já possuí-lo. 
           4 – Ora, todos conhecem a fixação de Borges em bibliotecas. Em vez de me alongar neste tema para não levar o leitor ao sono, prefiro responder a uma questão levantada por Ermelinda Ferreira: a cegueira de Borges. Herdeiro de uma deficiência visual que acometera o pai, o escritor me surpreendeu não apenas por conjugar muito freqüentemente o verbo ler, em todos os tempos – pretérito, presente e futuro -, mas também pela emocionada descrição de um passeio de balão que ele havia feito com Maria Kodama na Califórnia. Como (perguntava eu, que sou míope desde a mais tenra infância e sempre tive muito medo de ficar cego) um deficiente visual poderia ter usufruído daquela forma de uma paisagem terrena “vista” de um balão nos ares? Algum tempo depois, vi na televisão uma entrevista de Roberto d'Ávila com ele e nela repetiu praticamente com as mesmas palavras suas impressões daquele vôo. Ao vê-lo de novo na telinha senti a mesma surpresa, recebi o mesmo impacto da revelação que me fora feito pessoalmente. 
          Ainda em relação à cegueira, surpreendeu-me bastante uma afirmação que fez a mim e faria a Roberto: ao contrário do que se imagina normalmente a cegueira não é preta, mas branca. Segundo Jorge Luís Borges, cujo livro A História Universal da Infâmia me encantou tanto, o cego não vive num túnel escuro, mas com os olhos encobertos por uma tênue, embora luminosa, ofuscante até, cortina de gaze branca. 
        Depois de uma imagem linda como essa, sinto-me forçado a pôr um ponto final neste texto. Nada mais precisa ser dito. Não acha, Ermelinda? 


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