JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 31/7/2008
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Uma prosa de beijos sem veneno

               Nélida Piñon reúne discursos e resenhas em Aprendiz de Homero, fascinante “conversa de comadres”

A padroeira dos contadores de histórias para encantar é Sherazade, a bela filha do grão-vizir que, nos contos das Mil e uma noites, prendia a atenção do sultão, noite após noite, com narrativas fabulosas — como a do marujo Sinbad, entre tantas outras clássicas -, que ganharam o mundo todo, para se manter viva. Ela sobreviveu à ameaça de morte pelo soberano às amantes que levava para a cama, mas também conquistou o sonho dourado de cada humano: a imortalidade. Tanto é verdade que aqui uma vez mais ressuscita para servir de introdução a uma resenha sobre livro de uma escritora brasileira, cujo último romance, aliás, a tinha como protagonista (Vozes do deserto, 2006). Só que, desta vez, Nélida Piñon, brasileira, descendente de galegos, não comparece ao mercado livreiro com mais uma obra de ficção, uma obra reconhecida e consagrada internacionalmente (bateu o excepcional poeta e bem-sucedido colega romancista americano Paul Auster na disputa pelo Príncipe Astúrias, prêmio dado pela Espanha a escritores de renome internacional). Mas apenas reuniu discursos, conferências, ensaios e resenhas para falar da arte de sua personagem rediviva num volume, Aprendiz de Homero, editado pela Record.

Coletâneas de textos já publicados costumam ser concessões à facilidade e ao comodismo de autores que compensam a falta de inspiração comparecendo ao mercado para dar satisfação a seus editores ou manter o próprio nome em circulação em momentos de entressafra provocada pelo abandono das musas. Convém fugir desse gênero de expediente. Mas este não é o caso da mais recente obra de não ficção da célebre ficcionista: este é um livro orgânico, íntegro e, sobretudo, de leitura muito agradável. Nélida tem tal habilidade no manejo de nossa não mais inculta, mas ainda bela língua galaico-portuguesa (com raízes fincadas nos pagos da Galícia de seus ascendentes) que acaba prendendo o leitor numa teia sutil e fina, mas de fibra resistente, tornando-o súdito de seu próximo passo, de sua próxima lição - assim como Sherazade fez com o amante cruel. Nos textos todos, não importa sua destinação, sua data ou seus motivos, a autora pratica aquilo que o lingüista Frank Kermode chama de "conluio sedutor", ao se referir a canções narrativas de Bob Dylan, caso de Desolation Row. E, como exige seu amigo Gabriel García Márques, o autor de Cem anos de solidão, consegue o raro feito de alterar o ritmo da respiração do leitor, como se lhe estivesse narrando uma história de trancoso ou um caso de amor daqueles de demolir corações.

Nélida tece esta teia ligando pontos de heranças, influências e vivências. O leitor é informado de passagens fundamentais que determinaram sua opção profissional, como se fosse um velho amigo da família convidado para uma prosa ao pé do fogo. “Os livros e os escritores, porém, sempre enlaçados, teciam perante meus olhos aqueles enredos que seus personagens viviam, mas eles, não. Por isso mesmo, alquimistas e bruxos, eles me conduziam sob o impulso da escrita, à presença de D'Artagnan, na Place des Vosges”, escreveu ela. O lembrado Dumas, o parceiro Vargas Llosa, o mestre Faulkner, o patrono Homero, citado no título, são mãos que a guiaram nesse passeio encantado pelo mundo das letras

O título fala por si só da postura da autora quanto à relação entre ela e seu público: o exercício da literatura, para a autora de A república dos sonhos, é um aprendizado permanente, no qual o talento narrativo de Sherazade só tem razão de ser na exata medida da atenção que lhe presta o sultão. A escritora não assume uma postura de criadora de fatos e personae, mas de alguém que se dispõe a transmitir os rumores da tribo. É o caso de lhe passar a palavra: “sei-me destinada a queimar meu coração, a repartir minhas fibras entre anônimos, entre filhos de outros, que não são do meu sangue. A sofrer emoções advindas de um convívio difícil, mas comovente. Um convívio que, a despeito das fricções, não recebe o beijo envenenado”. Em outros termos, criar, para ela, não é um ato sobrenatural, um sopro de inspiração divina, mas um gesto corriqueiro da rotina, algo assim como tomar café e olhar a paisagem (em seu caso, a privilegiada vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma das mais lindas do mundo). Sua profissão de fé na humildade do ofício é comovente: "Jamais cobrei dos livros verdades e certezas. Intuía que as palavras saíam necessariamente do forno da mentira, que revestia as ações humanas. Mas em troca pedia-lhes a vida do vizinho, mais fascinante que a minha. Uma vida espessa como um mingau, segundo afirmavam os pensadore, coalhada de aventuras e de afetos intensos. Daí meu coração acelerar-se ao ritmo da fantasia”.

Melhor definição para sua obra em geral, e esta particular, não haverá: uma fascinante, erudita, comovente, articulada e apaixonada conversa de comadres. “Uma vida espessa como um mingau, segundo afirmavam os pensadore, coalhada de aventuras e de afetos intensos. Daí meu coração acelerar-se ao ritmo da fantasia”. Assim é o livro novo de Nélida Piñon: um tributo à mentira construído por verdades que nunca morrem, mas habitam a alma e o coração dos homens e permanecem impressas nas páginas que compõem todo o acervo das bibliotecas do mundo.

Aprendiz de Homero, de Nélida Piñon, Record, 368 págs., R$ 38

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