JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 28/8/2008
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Os riscos da banalização do poder de mando

        Um livro capital para o entendimento do século 20 é Eichman em Jerusalém – Relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt. Escalada para cobrir para uma revista americana o julgamento do carrasco nazista Adolf Eichman, raptado pelo Mossad na Argentina e conduzido à força para Israel, ela argumentou que o mal de nosso tempo não é produto de impulsos infernais, mas da indiferente rotina burocrática de nossa vida. Eichman não era um monstro, mas um burocrata comum, interessado exclusivamente em se dar bem na vida.
        Neste século 21, em que os homens de bem vivem sob o domínio do medo do que os burocratas do mal lhes possam fazer, a democracia subordinada à matemática das pesquisas de opinião banaliza o mando. Foi-se o tempo dos grandes projetos políticos, dos estadistas que planejavam para as gerações seguintes. Hoje todos se preocupam apenas em ganhar as próximas eleições, pouco se lixando para o que deles dirão os pósteros. Isso é verdadeiro para o mundo inteiro, mas em poucos lugares é tão óbvio quanto nestes nossos tristes trópicos. E uma evidência escarrada dessa verdade elementar é a tal da Operação Satiagraha, com a qual a Polícia Federal (PF), o Ministério Público e um juiz de primeira instância garantem ter desbaratado uma quadrilha de criminosos de colarinho branco e da qual alguns sumos pontífices do igualitarismo a qualquer custo querem tirar proveito político.
        O espetáculo das prisões do banqueiro Daniel Dantas pela PF, atendendo a solicitação do procurador Rodrigo de Grandis acatada pelo juiz federal Fausto De Sanctis, e dos dois habeas-corpus concedidos pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, tem sido composto com cenas de opereta bufa. Sem pretender emitir juízo de valor sobre eventuais crimes cometidos, ou não, pelo acusado, urge alertar para a possibilidade de essa farsa se tornar uma tragédia para o Estado de Direito que a sociedade brasileira conseguiu a duras penas após a vigência da Constituição de 1988. Malhar o presidente do Supremo como um Judas em Sábado de Aleluia, lançando no ar suspeitas sobre seu gesto, faz parte da guerra política. Contestar a instituição do habeas-corpus para fazer demagogia, como faz o líder do governo na Câmara, deputado Henrique Fontana (PT), é uma vilania leviana.
        De forma ainda mais malsã para as instituições democráticas agiram juízes e procuradores ao contestar decisão de Mendes, a pretexto de se solidarizarem com o colega da primeira instância. Tratar um caso como este, que só pode ser legítimo se for impessoal, como uma questão in pectore de um delegado, um promotor e um juiz representa um grave risco de transformar algo grave em galhofa pura. E o tom farsesco seria ainda mais acentuado depois, com o ofício encaminhado pelo promotor do caso, Rodrigo de Grandis (que não se perca pelo sobrenome), ao diretor da PF, Luiz Fernando Corrêa, reclamando do afastamento do delegado Protógenes Queiroz do comando das investigações.
        Tudo isso, contudo, seria empurrado para o fundo da cena com a entrada do protagonista de verdade, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que exigiu do policial um pronunciamento público dizendo que pediu para ser afastado e, assim, confirmando a versão da chefia e evitando “insinuações”. Foi aí que a farsa virou tragédia institucional, pois o chefe da Nação desceu de seu pedestal para desautorizar o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o diretor da PF, e ainda pediu satisfação a um subalterno de vários escalões abaixo.
        Qualquer cidadão brasileiro se sentiria honrado e aliviado se a maior autoridade do País, escolhida pela vontade soberana da maioria do eleitorado, tivesse exigido do agente federal não a permanência no posto, mas o respeito irrestrito às regras que garantem a liberdade e a privacidade de cada um. Cabe ao presidente zelar pelo juramento que fez de cumprir e fazer cumprir as leis, não importando que custo isso possa ter para seu prestígio popular ou seu cacife de votos. Se, em vez disso, ele prefere combater “insinuações” vindas não disse de onde, como de hábito, é justo temer pelo pleno exercício da cidadania. Ao se mostrar preocupado apenas com eventuais arranhões na imagem de seu governo ou em seu cabedal de votos, Lula revelou o tamanho do desamparo a que está pronto a relegar cada brasileiro, por cujo destino é responsável, ainda que não pareça ter a exata dimensão do que isso possa representar.
        A cena seguinte seria ainda mais trágica, mas nem por isso menos cômica: por ordens superiores, a Polícia Federal divulgou o teor da gravação de 4 minutos de uma conversa que teria durado, por completo, 225, tentando provar que realmente o delegado pedira para sair, e não fora afastado. Isso deu azo a que o policial desafiasse a chefia, apresentando denúncia formal ao Ministério Público Federal (MPF) contra seu afastamento.
        Entra, pois, no debate uma dúvida insidiosa: terá a PF, de competência decantada pela chefia, só um delegado capaz de chefiar um inquérito dessa relevância? A julgar pelos trechos publicados do relatório ainda inconcluso de Protógenes Queiroz, se isso for verdade, será difícil imaginar que a instituição tão badalada das operações contra criminosos de colarinho branco possa fazer a faxina moral que lhe tem sido atribuída. Mais importância que isso tem ainda o fato de um delegado ter sido alçado pelo presidente da República à condição de deus ex machina – aquele ser superior que descia para recompensar os bons e justiçar os maus no teatro da Antiguidade – e ter este feito pouco de sua autoridade, ao denunciar seu afastamento ao MPF. E juízes e promotores acharem que seus cargos lhes dão o privilégio de fazer justiça com as próprias mãos. A banalização do mando pode render votos, mas põe em risco a autoridade do presidente e os direitos do cidadão.

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