Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 223 - 1 ª quinzena de setembro de 2012
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

Paris

Havia uma chuva fina que molha o chão das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores àquela em Paris chovia sempre. Como adoro Paris, sonhei morar em Paris. Mas minha amiga Annie morreu, perdi o interesse.

“Somos morte”, diz “O livro do desassossego” de Pessoa. “Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real...” (p. 191). Sono foi o que ele escreveu, não sonho.

Cheguei a discutir com Annie minha mudança para Paris. Alugaria um estúdio no subúrbio, mas teria Annie por perto.

Não tão longe – algumas horas de trem - estaria Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Acordaria ao som de seus sinos, de seus hinos, de seus pinos, de sua imaginação. A catedral, maior do que a própria cidade.

Um dia, estando em Frankfurt, em casa de amigos, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E o amigo respondeu: "Eu levo você".

Fomos, que era domingo.

Não sei se voltarei a ver e ouvir o relógio da Catedral de Estrasburgo. Naquele dia esperei dar 6 horas da tarde na Catedral. A primeira coisa que acontece é abrir-se uma portinhola e dali sair a Morte em pessoa: um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte com uma foice, que bate com um martelo num sininho. Aquilo ecoa por toda a nave da igreja. É a hora da Morte. O passar do tempo. E o grande sino da Igreja responde, solene. Grave.

Chove sempre que estou em Paris.

Com Annie Gerault, que não tinha medo de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des Minimes", sob chuva forte, à noite. Fomos procurar um centro de budismo.

Mas Annie morava na Rue Fondary, não longe da Torre Eiffel.

Um dia saímos a ver a nova iluminação da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du Luxembourg.

Como carioca, logo pensei em assalto. O jardim estava deserto, a sensação era de calma.

Lembrei-me então: não estávamos no Rio.

 

Não sei se voltarei a Paris. Estou velho, e solitário.

Paris só sorri, só se serve acompanhado. E jovem. Como naquele outro tempo, quando tomei um porre de champanha no Café Flore. E depois saímos cantando pela rua deserta.

Hoje tudo mudou. Eu mudei, Paris mudou. Até assalto acontece em Paris.

O mundo deu saltos para trás. O relógio do tempo expõe seu bonequinho mecânico da Morte, a fugacidade do tempo.

A morte ali é um esqueleto com uma foice. O esqueleto toca um sininho, de som fino e penetrante.

Acordo, já não somos jovens.

O grave som do rugido animalesco do grande órgão da catedral abre os ares, as asas dos ares. O mundo se despedaça no horizonte, assustando as aves, anunciando a noite.

Talvez haja uma chuva fina, atapetando as calçadas. Eu tomaria um expresso no mesmo bar, acompanhado de um ovo cozido. Desceria a rua até o Metrô. E partiria para o mundo.

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