JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna (nª 200) de 20/11/2008
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O bagüá tá barangando

(A esfinge caolha à porta da Babel da Bíblia)

"Não se bula nem faça munganga, pois se não vai virar uma arupemba", dizia o sujeito atarracado, cabeçudo e sem pescoço ao paulistano, perplexo, no ponto de ônibus. Era um nordestino desempregado, poveretto (diria Juó Bananere), tentando assaltar o cidadão, que, para atendê-lo, teria de recorrer a um intérprete: "Não se mexa nem faça gracinha, porque senão farei de você uma peneira". É claro que isso é uma anedota e até já saiu de moda, mas quem já leu as mensagens que circulam na internet brincando com o modo "cearense" de falar sabe que ela não seria de todo impossível. Mais que possível, provável é o mesmo cidadão ser assaltado (quem nunca o foi?) por alguém que lhe grita a plenos pulmões: "Na moral!" Nem o imaginário assaltado nem eu nem você nem o editor desta revista, talvez nem sequer o próprio assaltante, saberá o que diabo significa esse "na moral", certo? Pois é, mas essa cena urbana, sim, já ocorreu e quero crer que ocorra amiúde nos cruzamentos viários das metrópoles brasileiras. Estamos em plena volta aos tempos bíblicos da Torre de Babel nas ruas do Brasil. Fala-se, fala-se muito, mas quanto mais se fala menos se entende. Nossa linda e culta língua portuguesa está sendo assaltada na rua, em casa, nos meios de comunicação e, pasme, até nos livros. Em seu lugar prospera um dialeto bárbaro e impossível de ser decifrado. Por isso, estamos sendo todos devorados pela esfinge caolha que guarda a Babel da Bíblia e se finge de Camões, não o poeta épico português, mas o quengo (tipo esperto e fescenino, também chamado de amarelo), herói sem caráter dos romances de cordel das feiras-livres do sertão.

A cena da piada, descrita no parágrafo acima, quase nunca resulta numa reação da polícia. Mas, só para efeito de raciocínio, imagine o preclaro leitor que o assaltante tenha sua atuação interrompida pela passagem improvável de uma patrulha policial. E que sua prisão seja comunicada pelo rádio pelo policial. Este dirá em linguagem cifrada ao interlocutor que acabou de enquadrar um meliante num típico "157". Apesar de não ser propriamente um leitor de textos jurídicos, o preso saberá imediatamente que será enquadrado no artigo do Código Penal que tem esse número e o interlocutor do patrulheiro será informado de que se tratava de um assalto, ao fim do qual o "indivíduo" não teve tempo de alcançar o "cavalo" (no caso, um automóvel usado para a fuga). Se quiser fugir da cadeia depois, o assaltante terá de recorrer a uma "tereza" (corda) ou a um "tatu" (túnel ligando a cela à liberdade externa).

De Dublin a Cordisburgo - Não pense o leitor apressado que o autor destas linhas seja um sujeito intelectualóide de maus bofes, inimigo dos regionalismos e das gírias. Como profissional da língua, este escriba de ofício tem plena consciência da enorme contribuição que os dialetos da roça e da rua tem dado à chamada língua culta das bibliotecas e academias. Ele mesmo rolava de rir quando se dizia que na cidade onde morou durante a adolescência, Campina Grande, Paraíba, o filme Os últimos dias de Pompéia passou com o título de Pompéia numa peinha de nada. Não é mesmo engraçadinho? E não é uma gracinha chamar o outro de meu rei, como fazem os baianos, ou, em vez de happy hour, convidar alguém para um vermu, hábito de certa patota da rua da Praia, em Porto Alegre? Aliás, o regionalismo não é um fenômeno exclusivo nosso. Zé Rodrix, escritor e sobretudo autor de belíssimas canções - como Casa do campo, sucesso de Elis Regina -, diverte-se mesmo é com os supercriativos tradutores brasileiros de Finnegans Wake, o romance riverrun (riocorrente) de James Joyce (caso do gaúcho Donaldo Shüller), que tentam a quase impossível empreitada sem um mínimo conhecimento de sua fonte original, a gíria suja das ruas de Dublin, capital da Irlanda e terra natal do romancista. Inspirado pelos irmãos concretistas Campos, esse tradutor adotou o título Finícius Revém, que rigorosamente não significa nada, quando poderia ter usado simplesmente O velório de Finnegan, a tradução literal. Quem for a Cordisburgo e ficar dez minutos olhando a venda do pai do médico e diplomata João Guimarães Rosa vai perceber que a estrutura do linguajar arrevezado do romanção Grande sertão: veredas tem seus fundamentos mais na prosa dos tropeiros que passavam por aquele balcão que nos conhecimentos (realmente admiráveis) do autor, versado em muitas línguas estrangeiras.

Quem freqüentou escola nos idos dos anos 60 do século passado sabe muito bem que mina queria dizer moça, garota, no linguajar típico da praia de Ipanema ou das proximidades da avenida 9 de Julio em Buenos Aires (afinal, essa gíria saiu direto das revistas musicais argentinas). Depois, se diria gata – como os transeuntes do Central Park chamavam suas namoradas de pussycat, em inglês nada londrino. Recentemente, as mulheres passaram a ser chamadas de cachorras, mas o aspecto pejorativo do jargão talvez tenha evitado que ele se alastrasse para além da linha d’água (ou melhor da franja de espuma). Hoje, os surfistas se aproveitam do tsunami da globalização planetária para misturar o inglês (idioma universal do comércio e da cultura) com a velha picardia do lunfardo portenho. Quando de cima de sua prancha o surfista vislumbra um ser humano do sexo feminino com as curvas todas no lugar, costuma dizer: "Olha o shape (pronuncia-se chêipe) da mina" ou ainda "esta aí está no shape". Se a transeunte, ao contrário, for reprovada pelo juízo estético do observador, merecerá a desqualificativa definição de "baranga" e seu acompanhante, mais desqualificado ainda por lhe dar atenção, será chamado de "bagüá". E, então, se dirá: "O bagüá tá barangando". Coitado do lobo bobo!

"Garçom, um hambúrguer" - O inglês, é claro, está entranhado em nossa Babel das ruas (sendo falado até pela esfinge do caolho), como já estivera, antes, o francês. Ou melhor quase, pois o embaixador Sérgio Corrêa da Costa fez um levantamento das palavras estrangeiras importadas por outras línguas, inclusive a nossa bela (mas não inculta nem última, como a definiu o poeta parnasiano Olavo Bilac, corrigido recentemente pelo colega Anderson Braga Horta em outro poema, embora menos recitado) e descobriu que o esperanto, tentativa malograda de uma língua universal, de nossos tempos ainda perde para a língua de Molière e o velho latim de Horácio e Cícero. Isso vai além da boa forma das banhistas de biquini. Não há serviço de entrega de pizzas (aliás, uma palavra italiana), mas delivery, certo? Nem se diz ludopédio, mas futebol (adaptada do pé na bola em inglês, football). Da mesma forma como ninguém aqui chama um camareiro, como se usa no Portugal de nossos avós, mas garçom (que vem de garçon, rapaz em francês).

A coisa ganhou tal dimensão que o deputado Aldo Rebelo (PcdoB-SP) redigiu um projeto de lei banindo estrangeirismos. Nem sequer original a idéia é! Os franceses, que têm uma língua colonialista (e não colonizada, como a nossa), mas perdem espaço no próprio território para o inglês de seus inimigos da ilha ao lado e dos americanos que cruzaram o Atlântico para salvá-los dos alemães invasores de Hitler, também travam em vão essa batalha. Imagine se alguém, só porque a lei manda (e está cheio de lei aí que nem pegar pega), vai comer hamburguesa em vez de hambúrguer ou voltar a usar bola ao cesto, e não mais basquetebol (basketball). Além de universal, esse fenômeno é velho. Noel Rosa chegou a ironizá-lo naquele samba: "Hello boy, hello Johnny, isso parece conversa de telefone", lembra-se?

"Me dá uma grana aí, chê" - Pois é. Depois do telefone do tempo do moço de Vila Isabel, veio a televisão (que, em gíria de presidiário, identifica qualquer buraco aberto na parede, ora vejam só). E esse bicho devorador de cultura promoveu uma devastação dos regionalismos, padronizando como norma "culta" da língua falada a gíria praieira do Rio de Janeiro e a pronúncia dos locutores paulistas, sem contribuir, contudo, para disseminar a maneira "correta" de escrevê-la. O jornalista e escritor Flávio Tavares (autor do clássico Memórias do Esquecimento, sobre os porões do regime militar, onde foi torturado e dos quais saiu trocado pela libertação do embaixador americano) conta um causo ótimo. Certa feita, surpreendeu sua mãe, gaúcha do interior e cuja saborosa linguagem foi sempre eivada de "chês" e "guri", usando o sinônimo carioca "grana" para o termo dinheiro, antes empregado corriqueiramente do Oiapoque ao Chuí.

O pronome oblíquo e o gerúndio - Mais que isso há a reclamar na padronização da língua falada em casa e na rua pela televisão a deturpação desses regionalismos. Quando algum autor de telenovela precisa caracterizar um personagem nordestino – mesmo sendo ele próprio nordestino –, logo recorre ao uso exagerado do pronome oblíquo lhe: "Eu lhe amo", costuma dizer Maria do Carmo, Senhora do Destino. E o autor, Aguinaldo Silva, pernambucano e letrado, nunca deve haver ouvido alguém usar essa alocução absurda. O autor deste texto, que também é nordestino e como ele freqüentou o bas fond do Recife Velho e o bar cult do TPN, pelo menos nunca a ouviu. Ele simplesmente terá adotado o padrão do nordestinês de televisão vigente.

Da mesma forma como é chique (corruptela do francês chic) agora abusar do gerúndio. Experimente o leitor telefonar para uma companhia aérea ou uma agência de viagens para reservar um lugar num vôo. Doze entre dez atendentes lhe (olhe o pronome oblíquo usado corretamente aí, gente) dirão: "senhor(a), irei estar fazendo sua reserva". Entraram na moda o verbo ir no futuro atrelado a outro verbo no indicativo e este, por sua vez, arrasta o horrendo gerúndio velho de guerra. Isso agride mais os ouvidos de um amante do vernáculo que as frases que circulam na rede mundial de computadores delatando estudantes analfabetos no vestibular ou constantando o linguajar dito dos "manos", vulgo maloqueiros. "Piolho tem uma PT380 com pente pa 13 bala. Se ele perde seis dos 10 pipoco e atirá 3 veiz em cada mano da outra quebrada, quantos vão pro ML antes de recobertá o pente da arma?" – esta é uma questão do formulário "Resorva as questão" do vestibular fictício para uma tal FICI (Facurdade Integrada Curíntian Itakera), que circula na internet. Muitos palmeirenses, são-paulinos ou santistas que riem a bandeiras despregadas desse linguajar tribal mal sabem que muitas vezes atropelam mais o idioma de Camões, Eça e Machado com seus gerúndios pseudocultos que o corintiano que eles ironizam nessa gozação preconceituosa, embora (vamos reconhecer) engraçada. E o gerúndio é mais feio e menos hilário (outra palavrinha na moda, esta, eta nós!).

Terror serial contra a língua materna - As atendentes de telefone, recepcionistas e secretárias em geral são assassinas seriais da língua que aprendemos com nossas mães, mas não são as únicas. Nem presidentes da República nos têm poupado desse terrorismo matricida com freqüência. Basta ver como se usa a torto e a direito o verbo penalizar no sentido de condenar, apenar, quando significa apenas sentir pena, depois que ele foi incorporado aos discursos dos políticos, embora não tenha entrado nos bons dicionários nem seja avalizado pelos melhores gramáticos.

Em defesa dos políticos em geral, só se pode dizer que eles não estão sozinhos nessa tarefa de tratar de uma maneira muito idiota nosso rico idioma. Há exemplos impressos: Márcio de Souza escreveu um romance de enorme sucesso de público e que terminou inspirando Benedito Rui Barbosa a produzir uma minissérie para comemorar os 40 anos da Rede Globo de Televisão. Mad Maria é o exemplo de uma história bem contada em português menos que sofrível. Como, de resto, os premiadíssimos romances de seu colega Bernardo de Carvalho. Ainda bem que Moacir Japiassu, Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque, Alberto da Cunha Melo, Sinval Medina e alguns outros heróis da resistência continuam produzindo evidências de que há vida inteligente na literatura brasileira.

Um dos clássicos do folclore político nacional selecionados pelo jornalista baiano Sebastião Nery é o causo, segundo ele verídico, protagonizado pelo coronel Chico Heráclio do Rego, de Limoeiro, interior de Pernambuco. À época do episódio, votava-se em cédulas impressas postas pelo eleitor num envelope que, lacrado e assinado pelos mesários, este depositava na urna. O coronel em questão reuniu seus moradores, mandou que ficassem em fila indiana e lhes entregou, um a um, os envelopes lacrados com as cédulas dos candidatos sufragados. Aí era só ir à seção eleitoral, pegar as assinaturas dos mesários e votar. Votar? Pois é! Um cabra mais ousado resolveu perguntar: "O senhor pode me dizer pelo menos em quem eu vou votar, coronel?" A resposta foi ríspida e rápida: "Então, cabra ignorante, tu não sabes que o voto é secreto?" Apois. Depois de uma campanha cívica da UDN, a oposição da época, foi consagrada a cédula única na qual o eleitor marcava com X o nome do candidato escolhido. Veio o voto eletrônico, o coronel morreu, mas o coronelismo está aí vivinho da Silva. A diferença é que os chefões políticos de hoje em dia recorrem à tecnologia "muderna" para praticar o "neocoronelismo". O governo federal, seja pretenso social-democrata, seja falso socialista, distribui cartõezinhos de plástico para dar acesso do miserável às proteínas do Bolsa Família: este é o assistencialismo estatal. O particular fica sob as ordens do crime organizado. Os traficantes de drogas e os milicianos que os combatem ordenaram a seus currais eleitorais concentrados nos bairros miseráveis das periferias das grandes cidades brasileiras que usassem seus telefones celulares de tecnologia de ponta para fotografar a maquininha de votar e assim assegurar que ninguém está traindo a promessa do voto no candidato preferido da quadrilha ou da milícia. Precisa dizer mais alguma coisa para o preclaro leitor sacar a atualidade deste livro do André Heráclio, que é do mesmo clã do Rego ao qual pertencia o velho Chico?

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