JOSÉ NÊUMANNE PINTO

Jornalista, editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, poeta e escritor com diversos livros publicados, entre eles: Solos do silêncio – poesia reunida  e O silêncio do delator, agraciado com o Prêmio "Senador José Ermírio de Moraes", da ABL. Leia novo texto de Ronaldo Cagiano na fortuna crítica do autor e conheça a poesia do colunista, cujo CD agora tem opção de download. Site: http://www.neumanne.com

Coluna de 9/7/2009
  (Próxima coluna 16/7/2009)

O sentimento íntimo da morte

                                    Em Réquiem, o poeta alagoano Lêdo Ivo depara-se com a dor provocada pela perda de sua mulher

                 O impacto provocado pela leitura de Réquiem, o poema longo que  o alagoano Lêdo Ivo acaba de publicar, mostra que faltava algo em sua obra capaz de elevá-la a um plano mais alto que o patamar por ele já alcançado. Não é fácil dizer isso de um poeta ativo e atuante aos 84 anos e que sempre esteve entre os maiores de sua geração. Ele chegou a esta idade “inteiro”, como notou Ivan Junqueira, seu colega de poesia e de Academia Brasileira de Letras, na introdução à Poesia completa, editada pela Topbooks em 2004. Agora ele já não tem um pedaço, um tudo, que continua sendo “sempre nada / e coisa nenhuma”, mas agora o é mais ainda, pois lhe faltava a dor, como intuiu Mário de Andrade em carta ao jovem Lêdo.
           A dor a que se referiu Mario se apresenta no grave e sóbrio cenho e na expressão dolorida de seu retrato desenhado por Gianguido Bonfanti, reproduzido nesta edição. Nela os versos de Lêdo são intercalados com pinturas de Gonçalo Ivo, seu filho, também autor da capa, simples e branca, atravessada por fios que lembram uma pauta musical ou uma rede elétrica povoada por andorinhas sinistras. Sinistra foi a chegada da morte em sua vida - a bruta veio e decompôs a dupla perfeita: Lêdo Ivo ficou sem Leda Ivo. Com isso, sua poesia ficou maior, mas incompleta, cumprida a terrível profecia do criador da Paulicéia Desvairada. Desaparecida Leda, Lêdo tornou-se íntimo da indesejada das gentes. Com Leda se foram a irreverência, o humor, a ironia e o sarcasmo com que o poeta exibia as fragilidades da condição humana, sem ocultar as do próprio estro. Sem Leda ficou o convívio com o mistério da ausência.
          A ressurreição pelo verso – Em Réquiem Leda ressuscita em versos mais longos e mais lentos, feitos com o esmero de hábito, mas agora com uma severidade nova, provocando no leitor a sensação de que também ele está sendo transportado no rio definitivo pela barca de Caronte - que se afasta pelos manguezais do olhar fatigado do poeta condenado à solidão. A experiência da ausência da companheira não tira a graça do registro da conversa dos adultos ouvida na infância do poeta em Alagoas e da experiência amorosa do adolescente, em Recife, logo no primeiro movimento do poema largo: “Como as letras gravadas a fogo / na anca de um cavalo roubado por um cigano, ou / um sinal de nascença / no quadril bem-amado”.
          A referência jocosa aos maus hábitos atribuídos aos andarilhos e a nostalgia das marcas na pele da mulher marcam o diálogo permanente de Lêdo com a amada, dolorido com a perda da musa da vida inteira, mas  também reconstruído numa poesia que difere da anterior, sem recusá-la e sem repeti-la.  O primeiro movimento revela a descoberta fatal: “Na Barra de São Miguel, diante do mar, / só agora aprendi: / o dia mais longo do homem / dura menos que um relâmpago”. O ritmo que Lêdo imprime ao seu Réquiem, um dos maiores poemas lavrados em português, não altera a consciência do poeta que, antes da perda decisiva, tinha vaticinado: “Toda eternidade termina em fumaça”. Introduz, porém, um sentimento novo ao mudar o elemento sem alterar o movimento: “A eternidade passa como o vento”.
          A vida presente na morte - O canto fúnebre se tece nas reminiscências da vida vivida: as imagens desta memória reconstruída dão gravidade e força à música dos movimentos do Réquiem. Mas, como sempre ocorre na vida, a inexistência cobra o dízimo da profundidade e da responsabilidade da existência. É ela a funda tristeza, também mãe da beleza suprema, como lembrava Manuel Bandeira em Madrigal. “Nada sabemos, a não ser que há uma noite / pura e vazia à nossa espera. Uma noite intocável / além do fogo e do gelo, e de qualquer esperança”, reza. Poema para ser recitado em voz alta e relido em silêncio – uma obra para ficar à cabeceira, porque convoca à reflexão sobre a vida e a morte, a alegria e a solidão, o amor e a dor, o desamparo essencial do ser humano. Diante da morte de quem acompanhou a gestação de tantos de seus versos, o poeta se prostra à evidência de que nada é definitivamente glorioso ou trágico diante do mistério inexorável da perda.
          Subitamente só, Lêdo cresce ao se curvar e se eleva ao se ajoelhar: “Vejo a morte escondida num raio de sol: / a sobra do arrebol, ninho de nenhum pássaro / e a abolição do vôo sobre qualquer páramo”. Prova viva de que a poesia que fica é aquela que sofre, mas também zomba do próprio infortúnio, Lêdo vem reintroduzir a lírica de tantos versos incontornáveis  no papel de filósofo-infante a criar uma nova épica, pondo-se no lugar da pedra de Drummond: “Que eu esteja sempre no meio do caminho / e a minha viagem seja inacabada”.
          “Felizes os que partem e não regressam jamais”, lê-se numa passagem do Réquiem. Não é exagero afirmar que feliz será todo aquele que souber encontrar as modulações do coração e do entendimento aptas a uma compreensão integral desse poema de alta inquirição existencial: um mergulho para dentro da alma, onde o poeta, infenso à autocompaixão, cuida apenas de dar voz aos mais íntimos sentimentos que lhe provocam a experiência da dor e da morte.

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