Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 229 - 1ª quinzena de dezembro de 2012
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

A carta de guia dos casados

Madrugada silenciosa. Escrevo sem saber onde me leva o texto. Escrevo de cabeça vazia, sem saber aonde me leva o escrever. Rubem Braga era assim, conseguia escrever sem assunto. Um gênio. Crônicas poemas em prosa, prosa límpida e clássica. Um dia ele falou em D. Francisco Manuel de Melo, como modelo da arte de escrever.

Mas por acaso encontro, na Internet, a “Carta de guia dos casados”, de D. Francisco Manuel de Melo, de 1651.

O livro tem na capa um anúncio curioso:

"Vende-se na Rua Nova".

Já naquela época era difícil vender o livro?

Diz o autor:

“Espantam-se os moços com o que ouvem dizer do casamento de ordinário aos mal casados, porque, senhor, ha V. M. de saber, que muito mais certo é que o mantimento bom se converta no mau humor que em nós acha, do que converter o mau humor nessa sua boa virtude.

“Parece-lhes aos moços intolerável a carga do Matrimonio. É, senhor, pesadíssima para os que a não sabem levar; para os que sabem, é ligeira. Uma arroba de ferro ao ombro carrega um homem, que com o fácil artifício de duas rodas póde levar hum quintal. Não excede o peso do casamento nossas forças, falta-lhe as mais das vezes nossa prudência para que o sustente: e de aí vem que nos pareça grande”.

O livro se endereça “a um primo”, e seu ponto de vista é masculino. E machista.

O primeiro problema do casamento para o homem – diz ele – é a falta de liberdade:

"Em verdade, que quando o casamento não trouxera outro algum bem, mais que livrar de tantos males, justamente merecia o nome de santa, e doce vida.
Pois vejamos o que se lhe dà a um casado, a troco dessa liberdade, que elles tanto allegão que deixão?
Da-se-lhe outra: entrega-se-lhe a mulher com a liberdade, com a vontade, com a fazenda, com o cuidado, cõ a obediencia, com a vida, com a alma.

"Quem pezarà o que deixa com o que recebe, que logo não conheça os ganhos desta troca?
Hua das cousas que mais assegurar podem a futura felicidade dos casados."

E mais, diz o sábio autor:

"Dizia hum nosso grande cortesão, havia tres castas de casamentos no mundo: casamento de Deos, casamento do Diabo, casamento da Morte. De Deos, o do mancebo com a moça. Do Diabo, o da velha cõ o mancebo. Da Morte, o da moça com o velho.

Elle certo tinha razaõ, porque os casados moços podem viver com alegria. As velhas casadas com moços, vivem em perpetua discordia. Os velhos casados com as moças apressam a morte, ora pellas desconfianças, ora pellas demasias."

"O homem que casa com mulher de pouca idade, leva a demanda meia vencida. Nos tenros annos não ha ruim costume; porque ainda o menos advertido está no animo como hospede, e não de assento.

Acusando hum homem a sua molher de mal acostumada, diante de seu Principe, foi delle perguntado, de que annos entrára em seu poder; e como lhe disse o marido, que de doze, respõdeo aquelle Rei: Pois vòs sois o que mereceis castigado, que tão mal a criastes.

Hum leão, em pequeno se amança. Aos proprios ferros da gaiola, em que vive preso, toma affeição hum passarinho; sendo aquelle por seu natural feroz, e este livre. He a criação outro segundo nacimento; e se em algua cousa differe do primeiro, é sò em ser mais poderoso este segundo.

O homem que tiver discrição, e industria, casando com mulher de tal idade, pai cuide que vai a ser de sua mulher, tanto como seu marido. Pòde fazer que Ella renasça com novas condiço?s.

Se vemos balhar hum usso em hua corda, animal de tão differente despejo, que bruto se afirma mal sobre a terra; que ha que desesperar de poder instruir a mulher moça em todos os bõs costumes, e dictames em que a puzer seu marido?
E tambem que ha que confiar de que não teme os ruins, se seu marido lhe dá liçoens, e motivos para cair, e ficar nelles?"

Sim, o casamento mudou. Esta carta de guia não serve aos nossos tempos.

Ele já não serve como guia de casados. Graças a Deus. Mas como guia dos escritores que querem escrever bem ele é um grande mestre.

Que de uma coisa ele sabe: do estilo, da beleza da prosa.

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