Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 230 - 2ª quinzena de dezembro de 2012
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

O NATAL DO CRISTO DO CORCOVADO

“O Cristo do Corcovado”, poema de Hemetério Cabrinha (Fortaleza 1892- Manaus1959), faz uma uma bela reflexão sobre o grande signo desta nossa cidade do Rio de Janeiro.

Ninguém escreveu outro poema igual, sobre o Corcovado e seu Cristo

Chamava-se ele, diz Ulisses Bittencourt, Hemetério José do Santos, “havendo incorporado ao nome o apelido Cabrinha”.

Viajou em 1918 para Manaus e ali viveu como marceneiro e autodidata, transformando-se num grande intelectual e famoso orador e poeta.

Publicou: Frontões, Satã, Caim, Meu Sertão, o drama em três atos Regeneração e Vereda Iluminada; colaborou em diversas revistas e teve trabalhos inéditos.

“Quando Vargas veio a Manaus, escreveu Ulisses Bittencourt, em 1940, Hemetério saudou-o com arrebatador improviso em praça pública, o que muito impressionou o então Presidente, acostumado a ouvir grandes tribunos, e este, ao retornar ao Catete, nomeou-o para alto cargo no Ministério do Trabalho, por considerá-lo líder nato do operariado amazonense”.

Conheci o poeta já no fim da vida, na porta do jornal "A crítica". Eu era muito jovem, mas já lá era jornalista e vi e ouvi quando ele declamava um poema de Castro Alves, para uma roda de linotipistas e redatores:

“Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães”

Era um homem imponente, cheio de glória, majestade. Tinha a voz grave dos atores trágicos, o gesto possante, os olhos alucinados. Impressionava. Nunca esqueci aquele momento.

O poema “O Cristo do Corcovado” é solene e eloquente. Para ser lido em voz alta, à moda antiga. Sim, vale a pena transcrevê-lo:

“No escalavrado píncaro da serra,
Que o luar alveja e a luz do sol estanha;
E onde a cidade, abençoando a terra,
Se espreguiça na falda da montanha;
Ergue-se o Cristo-Redentor, coitado!
Braços ao ar, o triste olhar cravado
Na base de granito que o suporta
De alma apagada e a consciência morta.
O Cristo cujo busto alvinitente,
Granítico, imponente
E lavado de sol;
Aureolando de alvura o Corcovado,
Qual Prometeu, virado
Para o horizonte, a medir o arrebol;
E, de distância imensurável, visto
Qual uma forma etérea
É apenas um Cristo
Feito à custa de angústias e miséria.
Se o Cristo real, na sua pura essência,
Inebriado de amor e de demência,
Dos céus viesse e visse a sua imagem
Naquela pétrea e estúpida roupagem!
— Monstrengo exposto
Ao sol, à chuva, à neve, á ventania,
Tendo a seus pés um povo em agonia;
Em seu cândido rosto
De Santo deixaria
Mil lágrimas de fel correrem doloridas,
E de olhos para os céus,
E de mãos estendidas
Para Deus,
Numa exortante súplica sem fim,
A Escribas e Fariseus,
Calmo e sereno, falaria assim:
— Quando vim entre vós, há quase dois mil anos,
Sem ter onde pousar a fronte iluminada;
Saturando de amor os corações humanos
E chamando ao redil a ovelha tresmalhada;

.............................................

Ninguém me compreendeu, ninguém quis escutar-me,
E numa sanha hostil, num tresloucado alarme
Levaram-me ao Calvário... Em hórridos baldões,
Deram-me, após magoar-me, a morte entre ladrões.
Só porque muito amei os pobres sem mansarda
Que a maldade feral do mundo os acobarda
E lança á execração Em minha singeleza,
Prometi-lhes o céu em troca da pobreza;
Elevando-lhes a alma aos páramos divinos;
Ao meu seio chamando os vis, os pequeninos,
Os que vivem na terra amarguradamente
Atirados ao léu, num desprezo inclemente,
Sob o azorrague atroz dos maus, dos impudicos
Que pensam Deus haver apenas para os ricos.
Para levar a luz da fé por toda a parte,
E fazer drapejar meu celeste estandarte,
A quem fui eu buscar com infinito amor?
A uma mulher perdida e um simples pescador.
À perdida — Magdala — abri meu coração
E a minha alma ofertei ao pescador Simão
Simão, que sem burel, cetro, trono ou tiara,
Iletrado e plebeu, de amor se iluminara
Por mim, na terra foi da caridade o exemplo;
Numa velha palhoça erigiu o meu templo,
Pondo, nele, em lugar de altares e esplendores,
Catres, para acolher humildes sofredores. .
A moeda que caía em seu fardel de esmola,
Com a bondade dos céus que os santos aureola,
Era qual grão de trigo ao bom pão levedado,
Para matar a fome e a dor do desgraçado.
Foi assim que pedi nas horas de agonia;
Foi assim que ensinei, era assim que eu queria
Que se fizesse sempre em meu nome. Entretanto,
Dois séculos depois, meu Evangelho Santo
Sumia-se no vai dos baixos egoísmos.

E, cavando entre mim e a nova fé abismos,
Os servos da ambição, numa luta assassina,
Mancharam a pureza excelsa da Doutrina;
Perseguindo, matando e roubando em meu nome,
Levaram meus fiéis á cremalheira, à fome.
Dando aos que muito amei a cicuta, o falemo,
E em negra ‘Inquisição” o imaginado inferno...

E para impressionar, abismar, deslumbrar,
Ergueram em cada canto um palácio e um altar
Fulgentes de européis e fina pedraria,
Enquanto os bons cristãos sucumbem de agonia.
Ergueram, para quê, no alto do Corcovado
Minha estátua? — se em tomo há tanto desgraçado
Que se pede em meu nome a paz para aflição,
Em meu nome recebe, em troca, a maldição?
Para que o esplendor de régio monumento
Se de dor me perturba o humano sofrimento?

Não vos disse a vibrar em meu amor fecundo,
Que meu reino imortal não era deste mundo?

Das arcas arrancai o tesouro guardado
E ide! Ide buscar a todo o desgraçado,
Que é filho de meu Pai e também nosso irmão,
Dando-lhe o pão do corpo, a paz do coração,
A luz da consciência! . .. E onde ouvirdes um ai,
Com desmedido amor do infortúnio arrancai
Essa alma a se estorcer nos desesperos seus,
E em memória de mim, erguei-a para Deus!

E manso, humilde e bom; cheio de amor e luz,
Era assim que diria o angélico Jesus”.

(O Cristo do Corcovado/1952)

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