Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Blog pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 292 - 1ª quinzena de fevereiro de 2016
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

A PANTERA

34.

Um dia, uma Maison famosa me pediu uma nova coleção primavera-verão e eu desenhei. Era a primeira vez que eu aceitava esse encargo. Trabalhei meses e depois assisti ao desfile, anônimo.

Foi consagrador, pois eu era diferente e logo encontrei meu lugar na chamada alta costura.

No fim da apresentação, apareci rapidamente para agradecer os aplausos.

Naquela noite sonhei com meu pai, coisa rara. Meu pai aparecia como um homem quase negro e me perguntava por que eu não queria fazer aquilo, e ganhar dinheiro. Ele não perguntava com palavras, mas com um gesto, um resmungo: “e então?” parecia dizer ele. Aí eu me lembrei de meu pai tocando piano em Itacoatiara, no interior do Amazonas, sozinho na cidade, no único piano da cidade, tocando aquela “Sonata ao Luar” de Beethoven, e lágrimas escorreram de meus olhos ao sabor da lembrança de meu pai no seu piano, tão longe, tão distante, no morto espaço de minha vida passada. Meu pai era um bom pianista. Aprendeu música em Strasbourg, onde cresceu, perto daquela catedral. Toda manhã acordava ao som dos sinos da Catedral... que vida, a minha!

E continuei assim desenhando coleções para diferentes casas, graças ao sonho de meu pai, profético, de apoio, como que dizia “vá em frente”.

Depois resolvi fazer mais fotografia. Era uma diversão. Eu sempre aprendia a cada foto. Fiz um estudo de luz e sombra em preto e branco e em cor. Fotografei corpos e objetos. Ao som das sonatas de Beethoven. Minhas fotos, reunidas, eram a “Sonata ao luar”.

Mas o mundo girava rápido. Soube que a ditadura brasileira prendeu um companheiro na Espanha e me apavorei.

Voltei a morar em hotéis por motivo de segurança, ou porque eu me sentia sempre em fuga. E tinha sempre uma boa quantidade de dinheiro vivo comigo para o caso de fugir. Talvez fosse paranoia, talvez. As notícias da repressão eram terríveis. Eu não viajava mais, sempre ficava em Paris, quase escondido. E estava só.

Mas o desfile da minha coleção foi um sucesso. Mexi com muita novidade, sapatos baixos e joias. Coloquei modelos rapazes com minha moda masculina, e eram os mais exóticos modelos. No meio do desfile coloquei um rapaz em cadeira de rodas, um verdadeiro paraplégico. Foi aplaudidíssimo. E entre as modelos femininas, uma senhora de setenta anos, de cabelos brancos, desfilou para mim.

Meu segredo era a ousadia.

No final, a modelo se despia à medida que desfilava, jogando as roupas no chão à medida que andava, trocando de roupa no meio do caminho. Era roupa fácil de tirar, fácil de vestir. Lancei óculos, sapatos, adornos, relógios, lenços etc. Fiz de tudo. Eu representava o novo, vindo do fundo da floresta.

Eu era o estilista da moda, mas continuava um mistério, não dava entrevista, ninguém sabia quem eu era, onde eu morava etc.

Depois, desapareci.

Conheci a ponta dos extremos. Dos cadáveres semienterrados no alto da floresta, cujas roupas vesti, ao maior luxo europeu. Ali estava eu. Era esse o mistério de minha concepção de mundo e de arte. Desenhei roupas para rainhas e para índias. O meu mundo era louco, era o caos.

Depois, resolvi mesmo desaparecer.

Pretendia ir para os Himalaias, mas um devastador terremoto com milhares de mortos me deixou paralisado. Era um mundo em guerra. Eu me via em busca de segurança, num mundo inseguro, móvel, tinha pesadelos em que era caçado por tropas inimigas. Eu só via destruição e morte por toda parte. Tudo era um horror, tudo era a catástrofe.

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